O caso não é único no Serviço Nacional de Saúde (SNS), nem tão pouco na Região de Lisboa e Vale do Tejo. Aliás, desde o verão que se tem vindo a assistir, e quase de forma sistemática, ao encerramento temporário de Urgências Pediátricas – tal como aconteceu com as de Ginecologia-Obstetrícia -, sobretudo no período da noite e ao fim de semana.
O motivo tem sido sempre o mesmo: falta de médicos. Já aconteceu nos hospitais de Setúbal, Barreiro e Almada, mas também em Évora e no Algarve.
Na semana passada, foi a vez do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, encerrar a porta da Urgência à noite e ao fim de semana, sem se saber até quando. A saída de seis pediatras em pouco tempo tornou impossível a garantia das escalas no mês de março. Ou seja, a Urgência funcionará de segunda a sexta da 08.00 às 21.00 horas.
A situação foi confirmada pela Direção Executiva (DE) do SNS que prometeu para esta semana a apresentação de um Plano de Reorganização das Urgências Pediátricas para a área de Lisboa e Vale do Tejo. Um plano que tem estado a ser preparado por representantes das instituições hospitalares da região, da ARS, do INEM, da Comissão Executiva para as Urgências Metropolitanas e Unidade Técnica Operacional dos Serviços de Urgência de Pediatria Médica.
Para amanhã, dia 7, está marcada nova reunião deste grupo com a DE, devendo ser a última antes do anúncio do plano.
Uma coisa parece certa, entre quem está no terreno: “Não faz sentido haver 12 Urgências Pediátricas de porta aberta o tempo todo”, defendeu ao DN o diretor do Serviço de Pediatria do Beatriz Ângelo, Paulo Om.
“Se somarmos todas as crianças que vão às Urgências à noite não se justifica mantê-las todas de porta aberta, tendo em conta os custos que isso representa, nomeadamente em termos de recursos humanos, porque em muitos dos hospitais as escalas são garantidas à custa de muito esforço e de muitas horas extraordinárias de todos os profissionais, que não são só médicos, mas também enfermeiros, assistentes operacionais, administrativos e seguranças. Para uma Urgência funcionar, há toda uma máquina que tem um peso brutal.”
O pediatra, também especialista em cuidados intensivos, afirma que percebe a vontade das populações “em quererem ter uma Urgência hospitalar aberta 24 horas os sete dias da semana perto de suas casas, mas o país não é rico e isso não é possível”. E considera mesmo que “está na altura de se pensar neste problema de forma global e de as próprias administrações hospitalares e os médicos deixarem de defender as suas capelinhas – ou seja, as suas unidades, só por que ali trabalham”.
“Está na fase de todos pensarmos um pouco mais acima desta visão”, acrescenta, garantindo: “Não me vou colocar na posição de defender o Beatriz Ângelo numa eventual concentração de Urgências, porque é o hospital onde trabalho. Não. Se perceber que o que está a ser pensado e for aprovado vai para uma solução de haver só três polos de Urgência em Lisboa (Santa Maria, Estefânia e Fernando da Fonseca), e que esta vai funcionar, é isso que vou defender.”
Apesar de – e independentemente do local onde trabalha – considerar que “qualquer plano para ser implementado tem de ter uma fase provisória de estudo e essa fase tem de ser avaliada, se calhar ao fim de seis meses, para se perceber se este polo funciona ou se é preciso avançar para um quarto polo”.
Retirar pediatras dos centros de saúde foi erro estratégico
A solução de manter três polos abertos em Lisboa e mais outro na Margem Sul, no Hospital Garcia de Orta, foi avançada pelo Expresso na última edição, mas a DE do SNS, em comunicado, já veio dizer que “a estratégia de reorganização dos Serviços de Urgência de Pediatria médica na Região de Lisboa e Vale do Tejo, deverá manter aberta no período noturno grande parte dos pontos da rede, visando assegurar a proximidade da população ao SNS”.
“Estando a ser desenvolvido também, “nesse sentido, o reforço do trabalho em rede entre as equipas das instituições hospitalares e dos cuidados de saúde primários, assim como o planeamento atempado, constitui a estratégia adequada para assegurar uma cultura de previsibilidade, segurança e confiança para as crianças e adolescentes, as suas famílias e os profissionais de saúde”.
Para o pediatra Paulo Om faz sentido a articulação com os cuidados primários, defendendo até que umas das medidas que poderia resolver “uma boa parte da pressão nas Urgências Pediátricas hospitalares seria o regresso dos pediatras aos centros de saúde”. Aliás, argumenta, “a decisão de retirar os pediatras dos cuidados primários, no tempo da ministra Leonor Beleza, tornando a Pediatria uma especialidade hospitalar, foi desastrosa, um erro estratégico que ainda não foi revertido”.
E explica porquê: “O sinal que foi dado aos pais foi que, se querem que o vosso filho seja visto por um especialista em crianças têm de ir ao hospital ou a uma Urgência hospitalar. E isto foi um erro brutal”, porque “ter um pediatra nos centros de saúde é ter um especialista em crianças disponível para ver os casos mais graves, para tirar dúvidas aos médicos de família nalguns acasos, e uma forma de concentrar a resposta”.
Por isto, diz, “não seria a solução milagrosa, mas contribuiria para a solução, sem dúvida alguma, porque se a população souber que há um pediatra a trabalhar no centro de saúde, não sente a necessidade de ir para uma Urgência à procura de um especialista”.
Paulo Om reforça que o problema de pressão nas Urgências hospitalares não tem só a ver com a falta de médicos. “Há poucos pediatras nas Urgências, e estas têm de fechar, mas a questão vai muito mais além disto. Na base está, em primeiro lugar, a falta de literacia em Saúde da nossa população, que usa a Urgência hospitalar de forma desadequada, por não saber como lidar com as situações. Há crianças que têm febre durante cinco dias e todos esses dias são levadas à Urgência para serem vistas”.
Ou seja, “há um excesso de procura, absolutamente inadequado, porque também sabemos que um excesso de oferta, 12 Urgências na região, gera um excesso de procura. Isto está demonstrado”, argumenta o médico. Também está provado, com estudos a nível nacional e com dados da própria ARSLVT, que 70% das crianças que vão às Urgências hospitalares são classificadas como pouco urgentes, sendo crianças que poderiam ser vistas nos cuidados primários”.
Devia investir-se mais em literacia em Saúde
O pediatra, diretor de serviço desde 2012, reconhece que “há falta de médicos de família e que, na área de Loures, a situação “é gritante”. “Não estou a culpar as pessoas, não têm muitas alternativas. A questão é que, provavelmente, a maioria das situações nem teria de ir ao médico de família, poderiam ser resolvidas em casa, aguardando a evolução e fazendo baixar a febre, se for esse o caso”.
E dá outro exemplo, “quando se diz que um hospital atende 20 crianças à noite, no caso de esta Urgência fechar, não serão as 20 desviadas para outros hospitais, provavelmente serão dez, porque as restantes não são urgentes e os pais aguardam pelo dia seguinte”.
Para Paulo Om a literacia em Saúde tem sido uma área onde não se tem investido muito, mas esta é parte da solução para o problema das Urgências. Mas há mais. Na sua opinião, o funcionamento dos cuidados primários tem de ter uma resposta melhorada, e esta deveria voltar a integrar pediatras.
À pergunta sobre se os próprios pediatras iriam aceitar regressar aos centros de saúde, assume com certezas: “Claro que sim. Há muitos pediatras cuja vocação não é a pediatria hospitalar, mas a de ambulatório. Se formos aos grandes hospitais privados à volta de Lisboa, a grande atividade é a consulta, porque o internamento pediátrico nos hospitais privados é residual e com muito pouca gravidade”.
“Os internamentos com gravidade estão nos hospitais do SNS. E se há pediatras que gostam de ver as suas crianças em ambiente de consultório, talvez o pudessem fazer no centro de saúde. Não tenho qualquer dúvida de que muitos teriam imenso gosto de integrar as equipas nos centros de saúde, o que seria parte da solução deste problema.”
A DE já garantiu que a maioria das Urgências irá ficar aberta, mas para Paulo Om “faz sentido haver apenas um polo na Margem Sul, que pode ser o Garcia de Orta, a servir de tampão e evitando que as crianças tenham de vir para Lisboa, como já aconteceu, e aqui estarem abertos três polos, Santa Maria, D. Estefânia e Amadora-Sintra.
E por uma razão muito simples, porque estes três hospitais são os que têm uma unidade de cuidados intensivos de pediatria, e estas não podem fechar à noite ou ao fim de semana”. Mas, volta a reforçar, qualquer solução tem de ser reavaliada para se perceber se bastam estes polos ou se é preciso mais um. E, neste caso, “penso que teria de ser, sem dúvida, o Beatriz Ângelo, pela dimensão que tem. Vê mais de 200 crianças por dia e é a segunda maior Urgência de Lisboa”, admitindo ainda que a solução poderá mudar conforme a sazonalidade.
“A procura das Urgências Pediátricas é superior no outono e inverno e menor na primavera e verão. Pode fazer sentido haver três polos no último período, e quatro durante o de maior procura. É só preciso que se reavalie”.
O pediatra assume ao DN ter expressado já todas estas opiniões a várias entidades e que o fará também na reunião de amanhã com a DE, para a qual foi convocado, porque “senão vamos remodelar só a ponta do iceberg, ficando tudo o resto para trás e o problema só ficará resolvido temporariamente”.
O que pensam os médicos
“São precisas soluções estruturais”
O bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, diz ao DN que quer para a questão das Urgências Pediátricas, como para as de Obstetrícias e para outras situações no SNS “são precisas medidas estruturais, que devem ter na sua base tornar o SNS mais competitivo na captação de médicos”.
Ou seja, argumenta, ou fazem a revisão da carreira médica de forma a que estas atraiam os médicos para o serviço público, ou continuaremos a assistir à saída de profissionais todos os dias. Para Miguel Guimarães a questão com os médicos não tem só a ver com os salários.
“Tem a ver com as condições de trabalho que estão a ser dadas e com as perspetivas para a carreira. Hoje, é muito importante para um médico poder conciliar a sua carreira com outras coisas, nomeadamente com a investigação ou outras situações familiares”, reforça.
O assunto está a ser discutido com os sindicatos médicos e com o Ministério da Saúde, mas não tem tido evolução. Aliás, o bastonário diz que “o MS já poderia ter dado qualquer sinal”. Mas defende ainda ser “preciso organizar o SNS de forma a funcionar em rede e ser possível manter a resposta mais adequada às necessidades da população”.
“Porque, quando há falhas nas Urgências de Pediatria ou de Obstetrícia o que se tem feito é encerrar os serviços e desviar-se os doentes e a pressão recai sobre os outros serviços, o que gera uma onda negativa e muito difícil de parar. Portanto, “é preciso definir o que se quer para o SNS”.
“Não me parece saudável haver listas de serviços abertos, tem de haver um plano uniforme”.
O presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil, confessa que o estado dos serviços do SNS e a pressão na Pediatria são problemas com várias dimensões e para os quais não há uma única solução.
“Por um lado, temos a política de salários e de proteção e progressão da carreira médica que tem sido implementada nos últimos anos e que tem levado, por todo o país, a uma desertificação dos serviços públicos. E se esta situação não for rapidamente resolvida só podemos esperar que ainda agrave mais. Por outro, temos a falta de profissionais e a situação das Urgências, sobretudo na área de Lisboa, onde há pressão por todos esses fatores, mas também, talvez, por haver um excesso de Serviços de Urgências”, argumenta o pediatra.
Na sua opinião, a existência de dez a 12 Serviços de Pediatria numa só região pode levar a um aumento da procura. “Sabemos que quanto mais serviços houver maior será a procura. Isto está mais que demonstrado em múltiplas situações”, dando como exemplo a Região do Porto, onde o modelo de Urgências metropolitanas levou “à concentração do atendimento à doença aguda numa única unidade, mas todos os outros serviços da zona se corresponsabilizam e colaboram nessa unidade, e o resultado tem sido satisfatório”.
No caso de Lisboa, reconhece que, se calhar, haver uma única Urgência seria pouco, mas é provável que se possam congregar esforços de vários serviços por forma a haver um número mínimo a funcionar e a garantir a resposta às situações emergentes”.
Jorge Amil é defensor do funcionamento de serviços em rede e em articulação, com base numa avaliação prévia de recursos e distribuição geográfica, o que não pode acontecer é que todas as semanas se encere um serviços e na semana seguinte outro. “Não me parece que seja saudável ou sensato que haja listas de serviços abertos, esta semana está um na próxima outro, quando alguém adoece tem de ir ao jornal saber qual o serviço que está aberto para poder ser assistido”.
O que é preciso “é definir um plano que seja uniforme em que vários serviços colaboram com recursos para que as Urgências possam ficar abertas”. O médico é também defensor de que “as Urgências hospitalares são locais para salvar vidas”, não devendo ser usadas como se fossem uma “loja de conveniência”, onde se vai para tratar “tosse ou febre”.
“Digo frequentemente aos pais dos meus doentes que a Urgência de um hospital é o melhor sítio do mundo para quando se cai pelas escadas abaixo ou quando se é atropelado por um autocarro. É dos piores sítios para se tratar uma dor ou uma febre, porque para isto vai ser necessário a continuação de cuidados. E não convém ampliarmos nem tratarmos o papel das Urgências como sendo o de uma loja de conveniência, porque não há recursos humanos e implica o consumismo de meios de diagnóstico”.
“Para se reverter a situação o médico diz ser necessário “uma atitude global”, reforçando que “não é uma medida única que vai salvar a situação que há anos se vem degradando e pervertendo”.
Os cuidados não estão centrados no cidadão, mas nos profissionais
A pediatra Maria do Céu Machado, que foi diretora de vários serviços hospitalares e é ex-presidente do conselho de administração do Hospital Santa Maria, explica ao DN que a situação ou as soluções que têm sido encontradas para a área da Pediatria e até da Ginecologia-Obstetrícia, “encerrando hoje um serviço e amanhã outro, colocam em risco as crianças e as famílias que não sabem bem onde as devem levar”, comentando mesmo que tais soluções não fazem jus ao conceito de um serviço “com cuidados centrados nos doentes, porque as soluções estão centradas nos profissionais”.
Embora aceite que seja a solução possível, só que, e como sublinha, “a visão, na Saúde, nunca pode ser a curto prazo tem de ser a médio e longo prazo”. Acreditando que a concentração das Urgências na área de Lisboa, com o modelo adotado para o Porto pode ser uma solução”.
“Penso que é este modelo de Urgência metropolitana que o dr. Fernando Araújo pretende. Vai levantar muitos anticorpos, mas acho que é a única forma possível para se funcionar. Não se justifica de maneira nenhuma ter tantas urgências abertas. Justifica-se a do Santa Maria e a da Estefânia, eventualmente a do Garcia de Orta, para drenar toda a área do sul, e a do Fernando da Fonseca”.
Concorda que a procura das Urgências hospitalares pode ter a ver com o facto de a Região de Lisboa e Vale do Tejo ser das mais afetadas pela falta de médicos de família. Por isso, defende, que uma solução para as Urgências deveria ser pensada a par com a reorganização dos cuidados primários. “A solução para as Urgências não é fazer-se mais hospitais. Passa pela reorganização dos cuidados primários e pela certeza de que as famílias portuguesas terão acesso a eles. São duas faces da mesma moeda, resolver só uma não resolve o problema”.
Maria do Céu Machado, que na década de 1990 foi abrir e liderar o Departamento de Pediatria do Hospital Fernando da Fonseca, acredita na mudança da que hoje se vive na área da Pediatria, dizendo mesmo que “contestação haverá sempre, mas será menos contestado se na solução forem envolvidas todas as partes interessadas”.
Fonte e crédito da imagem: Diário de Notícias / Portugal