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“O fado é uma língua que está viva e não um exercício de memória”

Referenciado no jornal britânico The Times ou adjetivado como uma “nova vida do fado tradicional”, na edição alemã da revista Rolling Stone, o novo trabalho de Carminho, ‘Portuguesa‘, tem despertado o interesse (e as boas críticas) de alguns meios de comunicação estrangeiros.

Por Portugal, o álbum editado a 3 de março tem conquistado, também, o top das preferências musicais dos portugueses. Um disco de fado tradicional, o espaço onde Carminho encontra a sua liberdade e criatividade, como explica em entrevista ao DN.

Pouco mais de um mês depois de ter editado Portuguesa, como tem sido recebido o novo trabalho?

Não podia estar mais feliz com a reação e a repercussão que tem tido não só nos media como nas pessoas que me seguem e que têm reagido muito a várias canções e não só aos singles. Reagiram muito positivamente ao facto do primeiro single ter sido um fado tradicional. Estou muito feliz com o disco e cada vez mais com a reação das pessoas, que não é possível prever.

E como têm corrido os concertos que já fez com os novos fados?

Sinto-me super agradecida e lisonjeada porque mesmo antes do disco ser publicado já havia muitos concertos e com salas cheias. Senti que as pessoas esperavam este disco, o que não pode trazer mais alegria a um artista. Os concertos têm corrido muito, muito bem e as novas canções estão a crescer.

E o disco tem tido destaque na crítica internacional.

É um enorme privilégio sentir o apoio e divulgação dos meios ao meu trabalho, nacionais e internacionais, claro. O destaque internacional reflete também o percurso que estou a fazer ao longo destes anos, de chegar a vários lugares do mundo e ter essa repercussão. Existe um acompanhamento desse percurso por parte do público e dos meios internacionais, o que permite que o caminho se continue a fazer.

“Este disco assenta sobretudo na prática do fado. Praticar o fado é a única maneira de se chegar a lugares diferentes.”

O que é este novo trabalho?

Este disco assenta sobretudo na prática do fado. Praticar o fado é a única maneira de se chegar a lugares diferentes. O fado é uma língua que está viva e não um exercício de memória. Sempre senti isso, mas desta vez, acho que conscientizei ainda mais. Desde que nasci que oiço a minha mãe cantar [a fadista Teresa Siqueira] e vou às casas de fado e é a praticar que se aprende. Não existem escolas, nem conservatórios, é na repetição constante e continuada que se vai afinando e percebendo o que se gosta ou não.

É também assim que se vai apurando a sensibilidade às palavras e à escolha dos poemas, todo esse artesanato é a prática do fado. Este disco é um pouco diferente do anterior [Maria, 2018)], que foi um encontro com a minha memória mais antiga do fado. Desta vez, foi uma busca pela prática, pelos poemas, de como se constrói um repertório, das conjugações diferentes com os mesmos elementos. Porque o fado tem elementos limitados.

"O fado é uma língua que está viva e não um exercício de memória"

O fado tem essas regras.

Que acabam por trazer mais liberdade do que se não existissem.

… como assim?

Dou um exemplo, é como uma criança que é mais livre se estiver num ambiente seguro e controlado e que por conhecer o espaço o compreende melhor. Se essa criança tiver toda a liberdade do mundo, isso vai criar-lhe medo.

Se fosse cantautora de um outro género musical sentiria mais medo de arriscar. Assim, sinto-me muito mais livre tendo uma construção, uma história que tem regras, e que depois é na prática, e com a prática, que se vão descobrindo algumas brechas e oportunidades para a experimentação e para trazer algo que a intuição manda.

“Desde que nasci que oiço a minha mãe cantar [a fadista Teresa Siqueira] e vou às casas de fado e é a praticar que se aprende. Não existem escolas, nem conservatórios, é na repetição constante e continuada que se vai afinando e percebendo o que se gosta ou não.”

Nos últimos anos o fado tem tido alguma, ou se calhar muita, experimentação. Ainda é fado?

Depende. Depende da seriedade com que se faz isso, depende da origem de onde partem essas mudanças e do seu propósito. Uma coisa é a liberdade de um artista dizer o que quer, e essas experiências são sempre positivas, outra coisa é a nomenclatura das coisas e o facto do fado ser uma espécie de carimbo que se dá a uma coisa onde não havia essa pretensão. O fado tem características.

Essas mudanças e experimentações devem ser feitas de dentro para fora. É através do conhecimento da linguagem que sabes o que vais necessitar. Como o cajón (instrumento de percussão), no flamenco, por exemplo, que a maior parte das pessoas não imagina que só existe por causa do Paco de Lucia.

Essa introdução vem de alguém que percebe os limites e o potencial da sua linguagem num todo, e onde eventualmente algum elemento possa servir aquilo que já lá estava – neste caso, as palmas do flamenco que já lá estavam.

Mas isto é um exemplo, pode ser uma inspiração e não uma pretensão mudar o fado. Eu não tenho essa pretensão. A experimentação deve ser feita com essa seriedade de conhecer-se bem o que se está a fazer e ser crítico naquilo que se tenta propor.

Há duas palavras que a seguem há muito tempo: fado tradicional.

Sim, mas referem-se muito mais à estrutura do que a algo que seja antigo. Tanto que pode continuar a existir a criação de novos fados tradicionais. Este disco passou um pouco por essa prática, não só de fazer acontecer no estúdio os fados, mas na prática de construção de reportório. O disco abre com um fado antigo, Pagem, do Alfredo Marceneiro. Ele que construiu todo o seu repertório, compunha e convidava outros a compor, é hoje a referência a quem vamos buscar os fados mais antigos. Trouxe-o para este disco como uma reverência.

Não só ele mas também a outros antigos. São essas figuras tão basilares da cultura do fado que nos vão dando pistas para continuarmos a fazer as coisas, quase como se fosse uma deixa para fazermos o nosso repertório. Há uma letra que escrevi para esse fado Pagem que vem desse lado. O lado que me inspira e faz sentir que tenho de fazer a minha parte.

Não tenho que escrever, mas acho que deve ser um sentido crítico do meu lado – e das novas gerações – sobre o repertório, não pode ser só uma repescagem sem critério. O fado está a mudar, as temáticas estão a mudar e o fado é só um instrumento. Deve-se pensar o que queremos dizer hoje em dia. Pode-se continuar a cantar coisas mais machistas, mas já não refletem o momento que vivemos e as necessidades do público.

“O fado está a mudar. As temáticas estão a mudar e o fado é só um instrumento. Deve-se pensar o que queremos dizer hoje em dia. Pode-se continuar a cantar coisas mais machistas mas já não refletem o momento que vivemos e as necessidades do público.”

Há uma forma diferente de escrever um fado do ponto de vista masculino e do ou feminino. Ou seja, há género no fado?

Acho que sim. Até há uns anos o fado era cantado por mulheres e escrito por homens. As mulheres cantavam em nome de uma mulher com as palavras de um homem. Umas vezes é brilhante e outras vezes são fados que eu não quero cantar. Não me quero colocar no papel dessa mulher. Essa mulher que cantava esses fados nessa altura tinha outro contexto. Não acho que se deva criticar o passado, mas sim contribuir para a mudança. Hoje em dia há cada vez mais mulheres a compor, e também já existem mulheres a tocar, bem como homens a cantar palavras de mulheres.

"O fado é uma língua que está viva e não um exercício de memória"

Foi difícil escolher os fados para este disco?

Fiz uma recolha ao longo de algum tempo e depois começamos a testar. Quando tinha uns trinta temas bastante preparados para começar a pré-produção arranjei um método, uma espécie de residência artística de 10 dias, bastante funcional, das 10.00 às 18.00, até almoçávamos no próprio estúdio (risos). Fizemos assim todo o trabalho. Deixámos amadurecer e testámos. Acabámos por fazer o disco nesses dias. Fui escolhendo, segundo a minha intuição, os fados que queria.

Há várias colaborações no disco: Joana Espadinha, Luísa Sobral, Rita Vian, Marcelo Camelo, entre outros. Como surgiram?

Foram pedidos que fiz, não só a estes artistas mas a outros. Mas o critério é sempre as canções, e por mais duro que seja dizer que não a um artista que gostamos muito, os meus contemporâneos que me ofereçam canções são escolhidos pelas canções. Quando as escolhas são feitas com critérios sérios não tens de justificar as tuas escolhas.

Outras colaborações foram acasos do destino, de me ter encontrado com os poemas da Sophia de Mello Breyner Andresen, do David Mourão Ferreira, do Manuel Alegre. Precisei conseguir autorização dos autores ou dos seus representantes. Fiz música para esses poemas e se isso dá um pouco de medo ao mesmo tempo é também um orgulho enorme.

Esse encontro com os poemas é como?

O momento em que há o encontro com o poema também define depois o nosso sentimento com o poema. A história do encontro também fala da vontade de ficar com ele. Há um embate, há um impacto, há uma sensação de compreensão. Os poetas falam melhor por mim do que eu própria, sem dúvida. Apesar de gostar muito de escrever e ter feito coisas que me realizaram muito, não há nada como o encontro com um poema que achamos que é nosso.

É uma sensação de identificação e familiaridade e não nos conseguimos mais desfazer daquilo. Quando isso acontece passo de imediato à composição das músicas, no caso deste disco e dos três poemas [de Sophia Mello Breyner Andresen, Manuel Alegre e David Mourão Ferreira], comecei logo a sentir a música e a gravar no telemóvel com o dictafone.

Já há datas para os espetáculos nos Coliseus de Lisboa e Porto, mas só acontecem em novembro…

Toda a gente me pergunta isso… mas tem a ver com o mercado estar a apresentar concertos com um ano de antecedência. O disco já foi apresentado no Lux, já tenho feito alguns concertos que, como disse no início, já estavam esgotados, mas os Coliseus em Lisboa (3 de novembro) e no Porto (10 de novembro) só em novembro. Feliz de mim que consegui agendar (risos).

Quando é que se começa a pensar no disco seguinte?

Já ando a pensar noutras coisas, noutras canções. A parte mais interessante é quando há uma fonte ela continua a brotar, e isso é muito gratificante. Respondendo, já quero fazer outro disco.

Em que estado está o fado?

O fado vive sempre num pulsar. Em altos e baixos, não relacionado com os artistas mas com o que o público está a ouvir. Sempre se falou da morte do fado, e o fado está sempre a morrer… Já esteve mais em voga, mas de alguma maneira representa também o entusiamo de outras áreas pela essência do fado. A pop, a verdadeira pop, vive disso, e vai-se contaminando com algumas coisas mais experimentais.

Por outro lado, o fado vai ser sempre uma fonte de inspiração para outros géneros. O próprio fado não tem outra maneira de ser praticado. Na altura em que lancei o meu primeiro disco, o fado estava no topo das músicas nacionais, era a pop da altura. Hoje em dia há outros géneros mais populares como os ritmos africanos e o hip hop que estão a contaminar a pop.

Isso não me faz mudar de género musical (risos). Só espero a realização pessoal e temos de a procurar onde nos sentimos bem. Para mim, onde me sinto bem é no fado mesmo sendo menos popular. Foi o fado que me fez sentir que pertencia a algum lugar. E isso para mim é muito importante.

"O fado é uma língua que está viva e não um exercício de memória"

Portuguesa
Carminho
14 temas
Editora: Maria Music/Warner Music

Fonte e crédito das imagens: Diário de Notícias / Portugal