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Nuno Palma: “É absurdo e factualmente falso dizer que a culpa do atraso do país em 1974 era do Estado Novo”

No ano em que se celebram 50 anos do 25 de Abril, o historiador económico Nuno Palma, no seu recente livro ‘As Causas do Atraso Português’, propõe uma visão progressista do Estado Novo, criticando algumas “políticas económicas irresponsáveis” que o sucederam.

O que o levou a vestir o papel de historiador economista para escrever este livro?

Eu sou historiador económico. Logo, fazer investigação nesta área é a minha profissão há muitos anos. Como tal, não vesti esse papel para escrever este livro. O meu livro ‘As Causas do Atraso Português’ tem o objetivo de divulgar a investigação científica que tem sido feita neste área, sendo também um esforço de síntese destinado tanto ao grande público como a investigadores de áreas próximas, mas que possam não estar familiarizados com a literatura científica existente.

No livro ofereço também uma análise sobre as causas do nosso atraso no presente, mas principalmente enfatizo o contexto e profundidade histórica desse atraso.

Antecipando uma das ideias do seu livro, Portugal teria sobrevivido e evoluído economicamente sem a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) ?

Eu sou um apoiante da União Europeia, apesar de considerar que precisa de reformas sérias e urgentes. O que eu critico no livro é uma política em particular da UE: os fundos europeus que são dados aos Estados-membros mais atrasados, como é o caso de Portugal. Ou, de forma mais precisa, que são dados às regiões mais atrasadas da UE.

A adesão do país à CEE (agora UE) vários tem aspetos positivos relacionados com a integração europeia que vão muito para além dos fundos, e relativamente aos quais Portugal pode continuar a beneficiar mesmo que os fundos acabem – o que eu considero que seria benéfico, pelos motivos que explico detalhadamente no livro. 

Relativamente à segunda parte da sua pergunta, mostro no livro que as nacionalizações e a reforma agrária foram políticas desastrosas para o país. Isto não é uma matéria de opinião: os dados mostram isso de forma inequívoca.

Mas o desastre não foi apenas imediato: o ambiente cultural que se viveu nessa época contribuiu para o emergir de uma atmosfera cultural e intelectual no país, que ainda hoje sobrevive de forma indireta, que se caracteriza por ser excessivamente crente na benevolência das ações do Estado e contrária à livre concorrência e ao mérito individual. Esse contexto é muito prejudicial ao desenvolvimento do país.

Como é que se mede a riqueza de um país quando o ponto de partida são fatores sociodemográficos ulteriores à economia, como a escolaridade ou o bem-estar? Seria correto medir a economia de um país apenas com base no PIB?

O PIB por pessoa é uma medida limitada – por exemplo, não mede a desigualdade -, mas é o melhor indicador único que temos relativamente ao bem-estar comparado das sociedades. Inúmeros estudos internacionais mostram que este indicador está fortemente correlacionado com várias medidas de bem-estar, e até com a felicidade auto-reportada.

Em suma, o PIB por pessoa não é um indicador perfeito, quando utilizado como aproximação para o nível de desenvolvimento das sociedades, mas as alternativas existentes não são necessariamente melhores. No livro, explico numa nota porque é que, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (que é um índice compósito) apresenta fortes limitações conceptuais e metodológicas.

A evolução económica que atribui ao Estado Novo acontece em simultâneo com uma estagnação política?

Dizer que o Estado Novo foi uma ditadura, que censurava e oprimia, é o suficiente para condenarmos politicamente o regime. Não é preciso inventar que é um regime culpado pelo atraso do país, o que muitas vezes tem o óbvio intuito de desresponsabilizar as más escolhas que o país tem feito nas últimas décadas.

Com o Estado Novo, deu-se o impulso inicial para a recuperação do atraso do país, que em termos do PIB se nota principalmente a partir dos anos 50, portanto ainda antes do impulso da EFTA [Associação Europeia do Comércio Livre] para a abertura da economia, tendo-se intensificado na década seguinte, com essa abertura.

No livro mostro que algumas das raízes dessa recuperação têm de resto origem em políticas das décadas anteriores. O problema do analfabetismo infantil, um travão ao desenvolvimento do país desde há séculos, foi decisivamente resolvido durante o regime, permitindo assim uma base de capital humano para a evolução futura.

A expansão da escolaridade para níveis superiores não poderia ter acontecido de forma sistemática sem esse problema ser antes resolvido, e começou a acontecer ainda durante o regime. A falta de democracia, sendo evidentemente criticável, não deve ser confundida com estagnação política, já que as instituições e possíveis reformas políticas têm múltiplas dimensões.

No livro, explico como o Estado Novo foi um regime inovador e reformista em várias dimensões institucionais: a convergência económica e aumento de bem estar (por exemplo, queda da mortalidade infantil) não aconteceram por acaso; foram resultado de políticas públicas concretas, de natureza jurídica e política.

Uma aposta nas exportações, consequência da industrialização, poderia ter dado outro tipo de sinal à Europa, talvez não implicando tantas restrições em troca de margem para produção nacional?

Portugal é uma economia pequena, sem peso relevante a nível internacional. Tem que ser uma economia aberta. No atual contexto, não é uma boa política pública o Estado tentar escolher vencedores: áreas ou setores onde investir.

O Estado precisa antes de se concentrar em fazer bem as coisas que apenas o Estado pode fazer: melhorar a eficiência do funcionamento da justiça, da regulação, da saúde, e do ensino público, por exemplo. Se isso for feito de forma competente, o crescimento e a convergência virão naturalmente.

Portugal teria sobrevivido sem os 133 mil milhões de euros (excluído os fundos recentes do PRR) que recebeu de Bruxelas?

Não só teria sobrevivido, como isso teria sido saudável. Quando menos fundos europeus, melhor para o país. Especialmente a médio e longo prazo. Depois de 4 décadas a receber fundos europeus, somos dos países mais pobres da Europa. Parece-me extraordinário haver quem acha que sem esses fundos seríamos ainda mais pobres.

A verdade é que seríamos mais ricos, até porque há vários mecanismos que podem ser apontados que sugerem que os fundos nos estão a fazer mal, como explico em detalhe no livro. Portugal não tem capital humano, ambiente intelectual e cultural, nem instituições suficientemente fortes para fazer uma boa utilização dos fundos. Por isso, eles estão a ter um efeito perverso para a economia.

Aproveito para acrescentar que um mito que existe entre a direita portuguesa é a ideia que se estivesse oposição no poder, os fundos europeus seriam bem utilizados. É uma ideia sem fundamento, a meu ver. Não se pode ignorar a profundidade histórica do atraso, que vai bem para além do governo A ou B. Todos os partidos e governantes refletem o país que existe, pelo menos tanto como o moldam.

A adesão à CEE condicionou os setores em que Portugal poderia ter evoluído?
Certamente que sim, mas volto a dizer que que a adesão em si foi algo positivo. O problema não é a adesão em si. Portugal iria continuar a beneficiar de outros aspetos da EU, como o livre movimento de pessoas e mercadorias, mesmo que os fundos acabassem, o que seria positivo.

Em relação à adesão à zona Euro, sente que teve impacto na nossa produtividade?

Teve um efeito transitório negativo, contribuindo também para a contração do setor transacionável da economia portuguesa. É discutível se esse foi um efeito apenas transitório ou se ainda se faz sentir. Também teve o efeito de contribuir para baixar decisivamente a inflação.

Eu estou entre os que acreditam que efeitos monetários se podem fazer sentir no longo prazo, o que não é de todo consensual entre os macroeconomistas. Mas o que é preciso ter em conta, mais que tudo, é que a adoção do Euro, e os termos em que isso foi feito, foi uma decisão política.

É por isso também uma decisão endógena ao contexto cultural, de capital humano, e instrucional, do país: e esses, por sua vez, só podem ser compreendidos estudando a nossa História.

A política de condicionamento industrial do Estado Novo pode ter criado monopólios em determinados setores? 

Sim, criaram poder de mercado, mas o condicionamento industrial e o corporativismo continuam, na verdade, vivos e de boa saúde nos nossos dias. O regime democrático manteve-os e acarinhou-os. Explico isso no livro. Na verdade, a memória do Estado Novo atrasa muito mais o país do que o Estado Novo atrasou.

A mitificação que a esquerda e a extrema-esquerda, em particular, fazem desse regime, instrumentalizando a História do país, hipnotiza muitos crentes e empurra o país para políticas económicas irresponsáveis.

Dizer que o Estado Novo era um regime que oprimia, por ser uma ditadura, não é o mesmo que dizer que era um regime que atrasou o país. Uma coisa não implica a outra. Podemos considerar cenários em que uma democracia mais precoce talvez tivesse desenvolvido ainda mais o país, e de resto considero alguns cenários desse tipo no meu livro.

Mas isso é diferente de se dizer que a culpa do atraso do país em 1974 era do Estado Novo. Isso é absurdo e factualmente falso. Tem a mesma validade científica de se dizer que a terra é plana.

Fonte: Diário de Notícias / Portugal

Crédito da imagem: Carlos Pimentel / Global Imagens