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Morreu António Mega Ferreira

O escritor, poeta, jornalista e gestor cultural António Mega Ferreira morreu hoje em Lisboa, aos 73 anos. Licenciado em Direito, o escritor premiado destacou-se pela sua intervenção cultural, tendo afirmado que gostaria de ficar “conhecido na história como um tipo que fez essas coisas todas” na área da cultura.

E assim foi: liderou a representação de Portugal como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt, em 1997, presidiu a candidatura de Lisboa à Expo 98, de que foi comissário, foi administrador da Parque Expo, presidente do Centro Cultural de Belém e diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura, que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa e as suas três escolas. A notícia do falecimento foi tornada pública por uma mensagem de condolências de Marcelo Rebelo de Sousa, publicada no site da Presidência da República.

“Foi um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura. Presto-lhe a minha homenagem sentida”, escreveu o chefe de Estado, numa mensagem em que recorda alguns dos marcos da carreira de Mega Ferreira, como a passagem pela Expo 98, pelo Centro Cultural de Belém, entre 2006 e 2012, e pela Orquestra Metropolitana, entre 2013 e 2019. “Todos conhecem o seu papel na Expo 98, que não foi só um evento temporalmente situado, mas um momento transformador de Lisboa, a cidade sobre a qual Mega Ferreira apaixonadamente escreveu”.

“O trabalho de António Mega Ferreira enquanto gestor (na Expo, depois no CCB, mais tarde na Metropolitana) deixaram um pouco na sombra o escritor, ainda que, nas últimas duas décadas, se notasse um renovado empenho nas obras de criação, fossem poemas, romances biográficos, livros de crónicas ou de viagens, monografias, ensaios cultos, até ao seu último livro, um dicionário de palavras que deixámos de usar, mas que mantêm o travo da história vivida e da História coletiva”, assinala Marcelo Rebelo de Sousa.

“Colega desde o Liceu Pedro Nunes até ao fim do curso na Faculdade de Direito de Lisboa, um amigo de sempre, jornalista da imprensa e da televisão, editor, ficcionista, ensaísta, cronista, poeta, tradutor, gestor cultural, António Mega Ferreira foi uma das figuras mais dinâmicas da cultura portuguesa do último meio século”, recorda, ainda, o presidente da República, sublinhando o comprometimento cívico e a distância irónica do entusiasta erudito.

O primeiro-ministro, António Costa, frisou, numa publicação no Twitter, que Mega Ferreira “ficará para sempre como um dos grandes mentores da Lisboa contemporânea. Sonhou e concretizou a Expo-98. Não como evento, mas como uma nova parte da cidade que amava”.

O presidente da Assembleia da República agradeceu a António Mega Ferreira por ter enriquecido o espaço público com um novo olhar sobre áreas como o oceano, a literatura ou a história. “Como jornalista, ensaísta, escritor e gestor, António Mega Ferreira marcou o nosso espaço público. As suas ideias e realizações enriqueceram-nos, levando-nos a olhar de outro modo para o oceano, a história, a literatura e as artes. Obrigado, Mega!”, escreveu Augusto Santos Silva, numa publicação na rede social Twitter.

Na mesma rede social, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, confessa que recebeu com profunda tristeza a notícia da morte de António Mega Ferreira, personalidade que deixa uma arca” indelével na sociedade portuguesa” e que recorda como “um extraordinário intelectual público e um brilhante gestor cultural”.

Por sua vez, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, recordou no Twitter que Mega Ferreira “revelou sempre uma profunda devoção a Lisboa”.

A jornalista espanhola Pilar del Río escreveu que Mega Ferreira “combateu as adversidades com o melhor humor e a mais genial ironia”.

António Mega Ferreira, com mais de trinta obras publicadas, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas, chefiou a candidatura e foi comissário da Expo98, depois presidente da Parque Expo, e também dirigiu a Fundação Centro Cultural de Belém, em Lisboa, entre 2006 e 2012.

Nascido na Mouraria

António Mega Ferreira nasceu em Lisboa em 25 de março de 1949, na Mouraria, na rua Marquês de Ponte de Lima, onde viveu a infância e a adolescência.

Era filho de um comerciante, detentor de uma papelaria na Baixa lisboeta, sócio de uma antiga loja de discos, republicano, anti-salazarista e anticlerical. Foi o pai que escolheu o nome próprio do autor e gestor cultural, António Taurino, congregando, num só, o nome do avô paterno e o do avô materno.

Mega Ferreira cresceu com a música italiana da época, com a banda desenhada do Cavaleiro Andante e com a leitura da biblioteca da casa da família, com a qual se iniciou em Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, escritores que cedo entraram na galeria dos seus afetos, como mais tarde viria a acontecer com Jorge de Sena e os seus “Sinais de Fogo”.

A morte do pai, em 1969, levou-o ao mercado de trabalho, primeiro como tradutor de imprensa estrangeira, no antigo Secretariado Nacional de Informação do Estado Novo, depois com a opção pelo jornalismo, que ganhou forma com a partida para Manchester, em 1972, onde se formou.

À camisola vermelha do Benfica, clube de eleição desde a infância, juntou então, num segundo plano, a camisola vermelha do Manchester United. Manteve-se leal aos dois clubes.

No regresso a Lisboa, antes de 1974, entrou na delegação do Comércio do Funchal, jornal oposicionista dirigido por Vicente Jorge Silva (1945-2020). Viveu a revolução, trabalhou nos gabinetes dos republicanos Raul Rego (1913-2002), ex-diretor do antigo jornal República, e do historiador e ensaísta Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), quando foram ministros de governos provisórios, e foi um dos nomes iniciais da redação do vespertino Jornal Novo, fundado em abril de 1975.

No percurso de Mega Ferreira, pouco depois, seguiu-se o semanário Expresso, onde permaneceu até 1978, quando entrou para a Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP), antecessora da agência Lusa, e daqui partiu para a redação da RTP / Informação 2 e para o semanário O Jornal, já no início da década de 1980, onde também assumiu a chefia de redação do Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL).

Foi nestes anos que se estreou como escritor. Primeiro, com um livro sobre a pintura de Graça Morais, publicado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, depois, com a sua primeira obra de ficção, “O Heliventilador de Resende”, surgida em 1985, na antiga Difel.

Em 1996, deixou o jornalismo para passar a dirigir o Círculo de Leitores e as suas edições, grupo para o qual já criara e dirigira a revista Ler. Não abandonou porém a escrita para os jornais, onde se manteve como cronista, em títulos como Diário de Notícias, Expresso, O Independente, Público, Egoísta, Visão e JL.

Expo 98: ideia nascida à mesa de um almoço

O trabalho com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses começou a ganhar forma em 1988, a convite do escritor e do gestor Vasco Graça Moura (1942-2014), que a presidia. Um encontro que, pouco depois, daria origem à candidatura de Lisboa à realização da Exposição Internacional de 1998 (Expo 98), sob o tema dos Oceanos, ideia estabelecida – como ambos relataram mais tarde – durante um almoço no Martinho da Arcada, em plena Praça do Comércio.

O projeto ocupá-lo-ia nos anos seguintes, como presidente da comissão de promoção da candidatura, que conciliou com a direção da representação portuguesa na Feira de Frankfurt. Então, foi-lhe diagnosticado um cancro, que venceria pela primeira vez, pouco antes da inauguração da Expo, ocorrida em 22 de maio de 1998.

Em junho desse ano, em entrevista à agência Lusa, Mega Ferreira recordou a palavra de ordem do MRPP, que o seduzira na Faculdade de Direito, antes de 1974, para dizer que “ousar lutar, ousar vencer” seria o “grande ensinamento” deixado ao país pela exposição.

Ao longo da sua vida, enfrentou, também, alguns reveses profissionais, nomeadamente enquanto gestor do Centro Cultural de Belém: primeiro, com a perda da Festa da Música, por falta de dinheiro, concluída a sétima edição, ficando para trás o apoio europeu e a parceria com as Folles Jounées de Nantes, mantida desde 2000, para dar lugar aos mais contidos Dias da Música, em 2007.

Pouco depois, neste mesmo ano, seria a vez da perda do Centro de Exposições para a instalação do Museu Coleção Berardo, na sequência do acordo celebrado entre o colecionador e o Estado. Por fim, a impossibilidade de concluir os novos módulos do centro até 2011, “grande objetivo” que tinha imposto a si mesmo, no início do mandato.

Embora se afirmasse como um “socialista não filiado”, a política não movia Mega Ferreira. Nunca o moveu, não era um fim, era antes algo subalterno à cultura, e não podia ser de outra maneira, como sublinhou. “Acho que a política é um departamento da cultura”, disse à revista Prelo, da Imprensa Nacional, em entrevista publicada no número de julho de 2015.

“A visão política, as opções políticas devem obedecer a uma visão cultural”, prosseguiu. “E a visão cultural o que é? É uma visão da sociedade. É tão simples como isto. (…) Mas é uma visão consequente, articulada, coerente do que é a sociedade, do que são as pessoas, de para onde vai a sociedade (…). Toda a opção política deve obedecer a uma visão cultural”.

Exatamente o oposto da prática corrente e da atualidade, deste “capitalismo no seu pior”, afirmou na mesma entrevista. “Isto é o capitalismo na sua versão mais rasteira, aprendida em ‘MBA’ de universidades neocapitalistas e neoliberais (…), ensinado como pensamento dominante”.

Este era conceito onde encontrava os maiores riscos. “A prudência deste regime de maioria absoluta, para mim, tem as cores do medo”, disse já este ano, em novembro, em entrevista à Rádio Renascença, quando recebeu o Grande Prémio de Literatura de Viagens da Associação Portuguesa de Escritores.

Percurso literário

Nas quase três décadas como gestor, nunca deixou a escrita de lado. Somou mais de 30 livros, a maioria publicada desde 2000, entre narrativa, ensaio, poesia, biografia.

Depois do cruzamento de ficções e referências de “O Heliventilador de Resende”, surgiram “As Palavras Difíceis” (1991), conto ilustrado por Fernanda Fragateiro, “Os Princípios do Fim” (1992), primeira coletânea de poemas, e os ensaios de “Os Nomes da Europa” (1994).

A produção intensificou-se a partir de 2000, com “A Borboleta de Nabokov”, primeira recolha de textos jornalísticos, quase todos dedicados a escritores, artistas e suas obras.

Seguiram-se os universos ficcionais de “A Expressão dos Afectos” (2001), Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, “Amor” (2002), “As Caixas Chinesas” (2002) e “O que Há de Voltar a Passar” (2003), a que juntou nova coletânea de textos de imprensa, “Uma Caligrafia de Prazeres” (2003).

Entrou no universo biográfico com “Retratos de Sombra” (2003) e a “Fotobiografia de Teixeira de Pascoaes” (2003), seguindo-se “Fazer pela Vida: um retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor” (2005), “Graça Morais: os olhos azuis do mar” (2005), “Abel Salazar: o desenhador compulsivo” (2006) e “Por D. Quixote” (2006), a quem voltaria dez anos mais tarde (“O Essencial sobre Dom Quixote”).

Um quadro de Matisse deu-lhe o mote para a estreia no romance, com “A Blusa Romena” (2008), e os retratos de Lisboa da artista norte-americana Amy Yoes permitiram-lhe uma história de amor em “Lisboa Song” (2009).

A vida do padre José Agostinho de Macedo, na viragem para o século XIX, sustentou “Macedo: Uma biografia da infâmia” (2011), no mesmo ano em que voltou a reunir, num só volume, vários “Papéis de Jornal” (2011).

Em “Cartas de Casanova: Lisboa 1757” (2013), imaginou um exílio do fugitivo de Veneza. Em “Vidas Instáveis” (2014), cruzou referências, de Leonardo Da Vinci a Marilyn Monroe, sob o mesmo conceito da instabilidade constante.

O conhecimento e a multiplicidade de perspetivas, sempre presentes, prosseguiram em “Viagem à Literatura Europeia” (2014), “Viagens pela Ficção Hispano-americana” (2015) e “Mais Que Mil Imagens”, título publicado no início de 2020, que toma por referência obras da pintura, escultura, fotografia, arquitetura e design, que, não sendo necessariamente as suas preferidas, lhe “suscitaram, em diversos momentos, o desejo de escrever”.

Em maio de 2021, publicou “Desamigados – ou como cancelar amizades sem carregar no botão”, avançando pelos universos da literatura, da história, da filosofia, ao evocar duas dezenas de personalidades, que vão dos imperadores César e Bruto aos escritores Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa, e as suas amizades “que acabaram mal”.

Nos derradeiros títulos, prevalece porém a paixão por Itália. É o caso “Crónicas italianas”, Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga 2022, da Associação Portuguesa de Escritores, surgida em outubro do ano passado, pouco depois de essa paixão lhe ter valido o Prémio Roma-Lisboa, atribuído pela Fundação Prémio Roma em colaboração com a Embaixada de Itália em Lisboa.

Na altura, estavam já publicados os contos de “Hotel Locarno” (2015), inspirados no hotel da capital italiana, “Itália – Práticas de viagem” (2017) e a síntese possível de Itália e Portugal, em “Santo António, de Lisboa e Pádua” (2019), com fotografias de Mark Gulbenkian, a que juntou uma revisitação do anterior “Roma – Exercícios de reconhecimento” (2010/2019).

Itália, o país de Dante, autor que revisita no posfácio da antologia “Poetas de Dante” (2021), para explicar como a escrita do autor do século XIV mantém-se decisiva para o imaginário popular ocidental: “O Inferno começa aqui”.

“Até morrer, todos os anos hei de ir a Itália”, disse Mega Ferreira, em entrevista ao jornal Público, em 7 de agosto de 2017.

Dois meses mais tarde, ao Expresso, bem-disse a sua condição de celibatário, por lhe ter permitido “construir uma obra literária”, reconhecendo a sua “total falta de pachorra para aturar as mulheres”, depois de dois casamentos e de algumas relações.

A derradeira obra publicada, surgida em outubro deste ano, é um “Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas”, “exercício de introspeção e de memória”, onde cruza viagens, episódios de infância, livros, sempre livros, e os seus autores.

À Prelo, quando da edição de “Hotel Locarno”, em 2015, disse que gostaria de ficar “conhecido na história como um tipo que fez essas coisas todas”, dos jornais, aos livros, à gestão da Expo, do CCB e da Metropolitana, sempre com a Cultura por rumo.

Fonte: Jornal de Notícias / Portugal

Crédito da imagem: Gerardo Santos / Global Imagens