Sérgio Solposto tem 60 anos e trata o café por “tu”. Sabe dos grãos e das origens, dos aromas e dos segredos. Detrás do pequeno balcão do seu histórico estabelecimento, mostra-se infatigável conversador e óbvio apaixonado pelos produtos que vende.
Não só café. Também chás, rebuçados, biscoitos, chocolates. Estamos na Casa de Cafés Solposto, que há coisa de uma década era ainda a Casa Laço – número 661 da Estrada de Benfica, a dois passos da conhecida Igreja de Benfica.
Um espaço gourmet, diríamos hoje. Uma “mercearia fina”, dizia-se antigamente. É uma das 192 Lojas com História da cidade de Lisboa, estabelecimentos do pequeno comércio de rua que desde há nove anos, por candidatura, recebem especial atenção da câmara municipal.
Quando se olha o mapa das 192 lojas, esta é a mais afastada do conjunto principal que se localiza na Baixa e no Chiado, como se percebe pela infografia que o DN apresenta nas páginas seguintes.
Apesar da crise e da concorrência de feiras e mercados, Sérgio Solposto mantém clientes de décadas e até tem sido visitado por gente mais nova movida pelos pequenos prazeres da alimentação. “De há uns anos a esta parte houve uma renovação. Especialmente desde a pandemia nota-se uma abertura de novas gerações, com 30, 40 anos, para os produtos de qualidade”, conta.
“São pessoas que muito provavelmente fazem pesquisas na internet e mostram curiosidade em experimentar um café torrado a lenha na véspera, como aquele que aqui vendemos.”
Toda a família do comerciante trabalha nesta casa desde há 74 anos. A mãe, natural da Serra do Caramulo, arranjou aqui trabalho em 1949, acabada de chegar à grande cidade com os seus 17 anos. Veio a tornar-se proprietária por volta de 1963.
O pai, nascido na Gesteira, Cantanhede, foi funcionário da Carris e também dava uma mão na venda de cafés e chás. Sérgio, que cresceu em Benfica e sempre se conheceu atrás do balcão, tornou-se gerente há coisa de duas décadas.
Ele, a mulher e uma funcionária são hoje os rostos do estabelecimento. Vivem por perto, conhecem clientes e vizinhos e atendem à antiga. Sabem o nome das pessoas, escutam-lhes desabafos e agruras, adivinham os produtos que procuram.
O nosso entrevistado não sabe precisar quando é que candidatou a Casa Solposto ao programa Lojas com História, talvez por volta de 2017 – o que levanta já a dúvida sobre se a iniciativa é assim tão relevante. “Não posso dizer que tenha sido determinante”, resume.
“Claro que nos dá maior visibilidade na internet e isso faz-nos chegar aos mais jovens. Mas, sinceramente,a raiz deste trabalho e da consideração que os clientes possam ter por nós é o servir bem e o passa-palavra de quem vem e volta e depois conta aos amigos.”
O Lojas com História foi criado em 2015 com o objetivo de “salvaguardar o comércio tradicional” com pelo menos 25 anos de atividade – desde que cumpra certos critérios estabelecidos.
Tratou-se de um projeto novo, à época, segundo escreveu o museólogo Luís Freitas na tese de mestrado Por Uma História das Lojas com História, defendida em 2020 na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
Lê-se que o comércio de rua em Portugal se distingue ao longo do século XX pela pequena dimensão das lojas, por ser muito especializado e por oferecer certa qualidade nos seus produtos.
Até que começa a mudar drasticamente em meados dos Anos 80, quando os hábitos dos consumidores também se alteram sob influência das grandes superfícies. “O comércio dito tradicional foi gradualmente caindo no desaparecimento”, escreveu Luís Freitas.
Numa reportagem da RTP em 1989, hoje disponível no site da estação pública, dizia-se que nas pequenas mercearias de bairro o atendimento personalizado e o vender fiado eram ainda chaves da sobrevi- vência face o que então se descrevia como “a moda dos supermercados” iniciada nos Anos 70 e a “novidade dos hipermercados”.
É então que o Estado tenta estancar uma óbvia decadência. Surgem iniciativas para “regulamentar edifícios de interesse histórico”, ou seja, para proteger as lojas de rua tendo como ponto de partida o valor arquitetónico dos respetivos edifícios.
A partir dos Anos 90, fundos como o Procom e o UrbCom, que ainda hoje colhem críticas, dão dinheiro à modernização e promoção de lojas antigas e procuram reabilitar zonas de comércio tradicional – o chamado urbanismo comercial.
Segundo a tese de Luís Freitas, a “viragem maior” só aconteceria em 2017, com a lei do “reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local”, um acrescento às regras do arrendamento, já que a maior parte das lojas tradicionais estava, e está, em imóveis que não pertencem aos próprios comerciantes.
Acontece que na capital, antes daquela lei, já tinha surgido uma iniciativa pioneira da sociedade civil: Círculo das Lojas de Caráter e Tradição de Lisboa, da associação cívica Fórum Cidadania Lx.
Pretendiam dar um “contributo prático em prol das lojas históricas” e apoiar a sua promoção, o que “ajudou a que a Câmara de Lisboa criasse o seu próprio programa”, reivindicam os responsáveis no site da associação.
De facto, é nesta senda que a autarquia decide dar o passo hoje visto como modelo de referência para outros municípios: o programa Lojas com História, que desde sempre colheu simpatias dos lisboetas, devido à relação afetiva que muitos têm com lojas icónicas que atravessam gerações. A ideia foi da então vereadora da Economia e Inovação, Graça Fonseca (que mais tarde seria ministra da Cultura).
A intenção do Lojas com História foi a de criar condições para “apoio e promoção do comércio tradicional local como marca diferenciadora da cidade”, segundo deliberação do Executivo municipal em fevereiro de 2015. Pretendiam incentivar “medidas geradoras de novos modelos de negócio e mais emprego”, o que permitiria “a continuação renovada de um setor com enorme valor patrimonial, cultural e económico”.
Simbolicamente, o Lojas com História previa, e continua a prever, a colocação de placas distintivas à entrada dos estabelecimentos, para sinalizar que se trata de espaços históricos, o que pode influenciar a escolha dos clientes. As primeiras placas apareceram em janeiro de 2018, faz agora seis anos.
Ao mesmo tempo, o programa levou à criação de um fundo anual de 250 mil euros integrado no orçamento camarário, para salvaguarda das “características genuínas” do pequeno comércio local. O fundo serve para obras de arquitetura e restauro, ações de promoção e marketing, fomento da digitalização ou apoio jurídico às lojas classificadas.
Nove anos volvidos, existem 192 lojas assim classificadas e mais sete que devem entrar em fevereiro. Daquelas, 32 fecharam portas ao longo dos anos, de acordo com informações da Câmara de Lisboa: 29 por mútuo acordo entre os proprietários dos imóveis e os comerciantes, duas por decisão dos comerciantes e uma por decisão judicial.
Como se depreende das palavras de Sérgio Solposto, e de conversas informais que o DN manteve nos últimos dias com comerciantes da cidade, o balanço do Lojas com História não é extraordinário, mas também ninguém traça cenários negros.
Sentem que, pelo menos, tem funcionado na distinção simbólica da singularidade e da identidade – o que consideram muito importante numa era de uniformização global do comércio.
Aliás, a recente vaga de encerramentos, que repete um padrão cíclico, levou a que se acusasse a Câmara de Lisboa de pouco fazer para proteger o comércio tradicional. Fecharam nas últimas semanas a Livraria Ferin e a Barbearia Campos (Chiado), o famoso restaurante Bota Alta (Bairro Alto) e a loja de loiças e depois pastelaria Casa Chineza (Baixa).
Alguns destes espaços estavam classificados como Lojas com História. Números publicados esta semana no jornal Público por Paulo Ferrero, presidente do Fórum Cidadania Lx, indicam que no ano passado encerraram 16 “lojas emblemáticas” na capital.
A Assembleia Municipal aprovou, a 9 de janeiro, uma recomendação do PCP para “avaliação e revisão urgente” do regulamento da iniciativa, o que teve a abstenção da Iniciativa Liberal e voto contra do Chega.
O vereador Diogo Moura, com o pelouro da Economia, diz ao DN que essa revisão “já está em curso desde o ano passado” e vai “tentar” que termine “o mais depressa possível”. “Várias entidades e lojistas já foram ouvidos”, sublinha. Além disso, desdramatiza o peso dos encerramentos.
Distingue “o que é a economia privada”, no âmbito da qual “um senhorio pode decidir o que fazer com o seu imóvel”, e o que é o programa camarário Lojas com História.
“Ao abrigo deste programa salvaguarda-se precisamente os contratos de arrendamento destas lojas, que, neste momento, não podem ser encerradas, nem ter aumentos de renda até 31 de dezembro de 2027”. Ou seja, o programa acrescenta garantias às que decorrem da já referida lei de 2017.
Segundo o autarca, “tem acontecido, na maior parte dos casos, que os senhorios e os inquilinos chegam a acordo para o encerramento” porque “há comerciantes que não querem manter o negócio ou há negócios sem viabilidade económica”.
Diogo Moura faz notar que a câmara “está interessada em manter a identidade e a memória” do comércio, sobretudo no centro histórico, “sejam os negócios em si ou os espaços em que eles se encontram”. Diz, a propósito, que o fundo municipal das Lojas com História já atribuiu 725 mil euros desde 2017, “o que permitiu a muitos negócios continuarem a sua atividade”.
O museólogo Luís Freitas, que fez a tese de mestrado em torno do Lojas com História, explica ao DN que falta melhorar a iniciativa, virando-a já não apenas para os comerciantes, mas para os consumidores.
“A Câmara deve manter o programa, porque está a tentar proteger espaços identitários de Lisboa e a fomentar um tipo de comércio perante a concorrência feroz dos centros comerciais, das grandes superfícies e das grandes marcas, que são iguais em todo o lado. Mas falta mudar de paradigma”, defende.
“O problema de muitas destas lojas é não terem clientes suficientes, o que obviamente se reflete nas receitas. Falta explicar aos consumidores portugueses e estrangeiros por que é que é importante comprar no comércio tradicional. Poderia haver uma maior ligação entre as Lojas Históricas, através da câmara, e a Bolsa de Turismo de Lisboa ou as instituições culturais da cidade”, sugere.
Esta análise vale sobretudo para mercearias, livrarias, lojas de roupa, artes e ofícios. Há outra perspetiva: a da restauração e do alojamento, que são representados pela AHRESP – Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal.
Ana Jacinto, secretária-geral da associação, entende que o programa Lojas com História “é muito importante, sobretudo para a proteção dos comerciantes no arrendamento”, mas “ainda é muito burocrático e era bom que fosse mais ágil e simples”.
“Estamos a falar de um tecido empresarial micro”, diz, afastando que o Lojas com História seja fonte de problemas ou tenha responsabilidades nos encerramentos.
“Viemos da pandemia e agora temos a inflação. De uma forma geral, os estabelecimentos micro não conseguiram robustecer-se financeiramente. Uma coisa é termos procura, que temos. Há números fantásticos devido ao crescimento do turismo interno e internacional”.
“Mas não devemos esquecer que a procura não se traduz sempre em rentabilidade, porque os empresários têm custos de operação enormíssimos: custos fiscais, salariais, de energia, das taxas de juro. Sobretudo a restauração não pode repercutir esses custos no preço final ao consumidor, sob pena de afetar a procura”, conclui Ana Jacinto.