A ornitologia é a primeira convocação de Isabel Rio Novo na sua biografia sobre Luís de Camões, essa ave de arribação que preencheu as mais importantes páginas da literatura portuguesa e viu esvaziada a sua vida de muitas referências biográficas.
Assim, logo à primeira página de Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões, o leitor confronta-se com o Camão, a ave que “trepa caniços e juncos mais altos em zonas húmidas de água doce, alimentando-se na orla destas”, que é “distinto e enorme”, de “coloração geral azul-escuro com tons púrpura e tem um bico muito robusto vermelho”.
Esta é a caracterização da enciclopédia das aves eBird para o Porphyrio, que já impressionara poetas clássicos, como Plínio, e que pelas bandas ibéricas era assim chamado. Daí que a biógrafa deixe logo explicado que “o apelido do poeta proveio de um topónimo [Camos – povoação da Galiza] cuja pronúncia e grafia evoluíram para Camões” na primeira das 728 páginas da obra recentemente lançada.
Para um país órfão de informações biográficas do seu poeta maior, esta primeira torna auspiciosa a investigação em que, finalmente, uma contemporânea avança e permite reconstituir em muito aquilo que se dizia ser impossível.
Isabel Rio Novo faz questão de clarificar desde logo na Nota Prévia que esta não é uma “edição académica”, e ainda bem porque foram raros os académicos que se ocuparam de Camões e que se preocuparam em legar uma biografia como esta, designadamente nas últimas décadas.
Entre as exceções, antiga, está o biógrafo do poeta Visconde de Juromenha que em 1860 se questionara “Não será possível alcançar mais?” e considerou que a resposta era “mui simples: experimente-se”. Foi essa a decisão de Isabel Rio Novo.
A razão para o descaso continuado relativamente a novas ou definitivas biografias sobre Camões não aconteceu por acaso. Como refere a autora: “São tantas as zonas nebulosas em redor de Camões que a dificuldade de nelas entrar têm dissuadindo as tentativas biográficas enquanto aproximação rigorosa à verdade de um indivíduo. Esse esvaziamento foi compensado, digamos, pela recriação efabulada e pela multiplicação de obras ficcionais que tomaram ou tomam Camões como protagonista.”
Faz questão de relevar que a sua biografia tem como destinatário “qualquer pessoa, seja ela especialista em estudos camonianos ou simplesmente desejosa de conhecer a vida fascinante de um homem do século XVI, que é o nosso maior Poeta”.
De quem se sabia pouco face ao muito que está escrito nesta Fortuna, com um amplo filtro a inúmeros trabalhos anteriores, um exame a explicações dúbias, e um avanço face a informações vagas que estão presentes na obra de Camões.
Quando se lhe pergunta se estas (des)informações foram úteis para o seu trabalho ou, pelo contrário, o dificultaram, responde: “Muitos dos que escreveram sobre Camões foram pródigos em tomar as referências da sua obra como indicações biográficas precisas. Sabemos no que isso deu.
Sem falar das dificuldades de apurar o que é ou não da autoria de Camões, tratando-se de poesia, é preciso atender aos modelos imitados, às estratégias retóricas, mais tudo quanto pode ter sido fantasiado, ainda que partindo de experiências vividas ou de reflexos da memória.”
Esse espelho na obra, existe. Daí que acrescente: “Se Camões não tivesse colocado na sua obra nenhum reflexo da sua vida, teria sido o primeiro escritor a fazê-lo. Há poemas datáveis, dedicados a personalidades sobre as quais há informações precisas, correspondendo com segurança a certos momentos históricos e a contextos.”
Dá um exemplo: “Há poemas em que descreve com rigor determinados lugares em que esteve e deu indicações sobre o tempo em que lá permaneceu. Umas vezes foi «um breve espaço» [cabo Guardafui], noutras «uma grão parte da vida» [ilha de Ternate].
Seria tonto abdicar do potencial de informação biográfica que encerram, portanto, pode dizer-se que existem informações autobiográficas na poesia de Camões. Há é que as situar e avaliar com cautela, destrinçando o que são convenções literárias do que poderão ser pistas.”
Entre as tresleituras que aponta em anteriores investigações sobre Camões estão as de José Hermano Saraiva, considerando-as como uma leitura dos acontecimentos em que o historiador “imaginou”.
Confessa que se confrontou com leituras inquinadas: “Muitas, e nem falo daquelas que são assumidamente ficcionais. Eu própria imaginei, nalgumas ocasiões, e noutras apelei à imaginação do leitor. Mas procurei, seguindo a lição de George Le Gentil, distinguir sempre claramente quando estou a apresentar um facto, uma forte probabilidade ou uma mera possibilidade. Deixei sempre claro que se tratava disso mesmo: uma conjetura. Julgo que outros antes de mim não tiveram sempre o mesmo cuidado.”
Do que não ficam dúvidas é da responsabilidade do poeta nas muitas desventuras por que passou. Isabel Rui Novo explica: “Até certo ponto, sim, e ele próprio terá tido consciência disso, ao responsabilizar, também, os erros seus pela sua perdição. O cronista Diogo do Couto, sem se deixar toldar pela amizade que o unia ao Poeta, falou da sua «natureza terríbil».
Já Pedro de Mariz, o primeiro biógrafo, colocou a hipótese de que Camões tivesse «alguma propriedade natural que afastava os homens de lhe fazerem bem», insinuando que o seu biografado padeceria de «ingratidão».
Em vários passos da sua vida, vemos Camões a cortar subitamente relações com alguns amigos influentes que poderiam tê-lo protegido, e que o protegeram até certo ponto, como o governador Francisco Barreto. A culpa não pode ter sido, sempre, só dos outros.»
No que ainda respeita à personalidade de Camões, a biógrafa refere (p.500) sobre Os Lusíadas o seguinte: “Além do valor literário, a obra tinha a impô-la um certo aroma de escândalo”. Isabel Rio Novo justifica assim esta afirmação: “Camões escreveu e quis imprimir Os Lusíadas por várias razões.
Para publicar a sua obra-prima e responder à sua «ânsia de supervivência», para usar as palavras de Aquilino Ribeiro. Para fornecer àquele a quem o poema é dedicado, o rei D. Sebastião, um modelo de conduta. Para ser escolhido como «cantor» da futura expedição militar no Norte de África.
Para que o poema ajudasse a desbloquear o seu problema financeiro, fazendo reverter para uma tença a anterior nomeação para a feitoria de Chaul. O que acontece é que Camões era, até certo ponto, incapaz de contemporizar, de se calar quando sentia que algo era digno de protesto.
Por isso é que as estâncias finais do seu poema épico – escrito para ser lido como uma epopeia, note-se – contêm sempre duras críticas, inclusive aos descendentes do Gama, inclusive ao próprio rei. O «escândalo», ainda que atenuado pelo tom inequivocamente heroico dos cantos, terá sido inevitável.”