Pessoas a atirarem-se ao mar para escaparem às chamas. Condutores encurralados dentro de carros. Residentes a enviarem mensagens de telemóvel às famílias antes de desaparecerem.
O inferno chegou ao Havai com uma vaga de incêndios tão voraz e persistente que as chamas que deflagraram na noite de 8 de agosto consumiram a cidade histórica de Lahaina, agora praticamente reduzida a cinzas.
Com um cenário apocalíptico na ilha paradisíaca de Maui, o número de mortos e desaparecidos ainda é incerto, com milhares de deslocados e desalojados.
Três frentes mortíferas, com a pior em Lahaina, fazem desta a pior vaga de incêndios dos últimos cem anos nos Estados Unidos, ultrapassando a tragédia que aconteceu na Califórnia em 2018, quando o Camp Fire matou 85 pessoas e destruiu a cidade de Paradise.
As autoridades estaduais disseram, no início da semana, que há 99 mortos confirmados. Eram crianças, pais, avós, residentes que não conseguiram escapar.
O governador do Havai, Josh Green, disse na segunda-feira que o número de fatalidades deverá subir “de forma muito significativa” nos próximos dez dias, à medida que avançam as operações de salvamento e recuperação.
Poderá levar semanas até que haja uma ideia mais concreta do número de vítimas e dos estragos provocados pelos fogos, desencadeados por uma combinação de efeitos durante o furacão Dora.
“Nunca tínhamos visto um incêndio que afetasse assim uma cidade”, já tinha dito o governador, numa das primeiras reações à destruição de Lahaina. O responsável descrevera como um “choque” o fogo inflamado pelos ventos de um furacão que passou a centenas de quilómetros de distância.
“Creio que estamos a ver isto em muitas partes do mundo, fogos da Califórnia ao Colorado”, referiu Green, apontando para as alterações climáticas como um dos motivos para o desastre.
“É difícil, num momento em que o aquecimento global está a ser combinado com tempestades e secas cada vez mais fortes”, sublinhou. “As alterações climáticas estão aqui e estão a afetar as ilhas, e penso que é isso que estamos a ver com este fogo.”
O número de incêndios quadruplicou no Havai nas últimas décadas e Green referiu que este deverá ser o pior desastre natural de sempre no estado.
O governador, que fez já cinco proclamações de emergência relacionadas com os fogos, estimou prejuízos na ordem dos 6 mil milhões de dólares (5,4 mil milhões de euros), enquanto o seu governo pediu aos turistas que deixem a ilha, com muitos hotéis a darem guarida a desalojados.
O presidente Joe Biden aprovou a declaração de desastre a 10 de agosto e deu acesso aos fundos federais de emergência para auxiliar os residentes de Maui. Maona N. Ngwira, responsável da FEMA – agência federal de resposta a emergências – foi designado coordenador das operações de recuperação nas áreas afetadas.
Como tudo começou
Ainda não foi determinada a origem exata do fogo, mas Maui encontrava-se dentro das condições que o Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA classifica como “bandeiras vermelhas” quando os incêndios deflagraram: ventos em rajada, baixa humidade, falta de chuva e vegetação seca.
“Não sabemos o que provocou os fogos, mas fomos avisados pelo Serviço Nacional de Meteorologia que estávamos numa situação de bandeira vermelha”, disse o major general Kenneth Hara, comandante da Guarda Nacional do Havai, em conferência de imprensa.
O Serviço notara isso mesmo num aviso antes do início dos fogos. “Embora o furacão Dora vá passar muito ao sul sem impacto direto aqui, o forte gradiente de pressão entre ele e a elevada pressão a norte cria uma ameaça de ventos prejudiciais e clima de incêndio devido às condições de seca”, alertou a agência na altura.
O perigo veio a confirmar-se. A força do furacão Dora (categoria 4) que passou a mais de 700 de quilómetros de distância gerou rajadas de vento de 107 km/h em Maui, ajudando a criar as condições que levaram ao fogo.
Isso foi combinado com uma seca que está a agravar-se no arquipélago há mais de duas décadas e a proliferação de espécies invasoras de ervas, uma vegetação seca que cobre grande parte do território.
Vários sobreviventes contaram como o inferno galgou a cidade em tempo recorde e a rapidez das chamas também apanhou os oficiais de surpresa. Sem tempo para escapar, muitos residentes tiveram de se atirar ao mar para sobreviverem. Uns foram salvos pela Guarda Costeira, outros não conseguiram aguentar.
Mike Cicchino foi um dos que sobreviveu. Saiu de casa para ver o que se passava com os postes de eletricidade e viu-se rodeado por chamas e vizinhos a correr. Ele e a mulher tentaram fugir de carro mas muitas ruas estavam bloqueadas pela polícia, por causa de problemas causados pelos ventos fortes. As autoridades acabaram por orientar os residentes a fugir na direção que seria arrasada pelo fogo. Encurralados, Mike a mulher atiraram-se ao mar e passaram oito horas na água. Outros residentes tiveram de fazer o mesmo. Nas estradas à beira-mar ficou um rasto de viaturas completamente queimadas.
“O fogo estava a chegar à água”, disse Cicchino na emissão da NewsNation. “A forma como consigo explicar isto é como se fosse uma bomba que estava sempre a explodir.” Havia barcos em chamas no oceano e os vídeos mostram a superfície da água a borbulhar com o calor. “Se eu me afogar não te preocupes, salva-te”, disse Cicchino à mulher.
Ambos sobreviveram, mas outros não tiveram a mesma sorte. O rescaldo é quase inenarrável.
Foi isso que contou Clint Hansen, residente em Kihei, à MSNBC. “É chocante pensar que os sítios onde crescemos já não existem, ter medo pelos amigos, porque não se consegue comunicar com eles, assistir a imagens de pessoas que foram queimadas vivas nas ruas, pessoas em pânico.”
Richard Olsten, que detém uma operadora de turismo de helicóptero em Maui, sobrevoou a zona do desastre e disse à estação de rádio local que “parecia um cenário de guerra” onde tinha caído uma bomba.
De quem é a culpa?
O choque e o pânico inicial estão a dar lugar à raiva e pedidos de responsabilização. Nos relatos de muitos sobreviventes, da rádio à televisão, é constante a indicação de que não houve qualquer tipo de aviso sobre o que estava a acontecer.
O Havai tem o maior sistema sonoro de alertas do mundo, mas este não foi utilizado para urgir à retirada dos residentes. Mike Cicchino apontou que, por volta do meio-dia, o primeiro incêndio que havia deflagrado foi considerado controlado. Poucas horas depois, estava a atirar-se ao mar para salvar a vida.
“Não houve sirenes, avisos de evacuação, mensagens de texto, polícia ou bombeiros”, disse o sobrevivente. “Só soubemos que havia fogo porque vimos fumo e pessoas a fugirem.” Mesmo as informações via rádio eram escassas. “Sinto que isto podia ter sido evitado”, criticou.
Um dos problemas foi a falha da rede elétrica e da rede móvel, o que significa que mesmo quem tentava ligar para serviços de emergência não conseguia auxílio,
Também os bombeiros relataram dificuldades no controlo das chamas. Alguns dos que combateram o incêndio que se aproximava de Lahaina disseram ao New York Times que as bocas de incêndio estavam secas ou produziam uma pressão da água tão baixa que foi impossível conter o fogo e as chamas ficaram descontroladas.
Keahi Ho, um dos bombeiros, disse à CNN que ainda assim não aponta o dedo ao condado ou à corporação. “Qualquer culpa no condado ou na resposta é mal atribuída. Lahaina é uma localidade com 150 anos e a sua infraestrutura é o que é”, afirmou. “Os bombeiros de Maui responderam com um esforço heroico.”
Ho acrescentou que “este foi um vento e um incêndio extremos que nenhuma corporação de nenhuma dimensão conseguiria ter parado.”
Além disso, segundo o responsável pelo fornecimento de água em Maui, John Stufflebean, o fogo derreteu os canos e impediu que os geradores alternativos ativados para manter a água a fluir funcionassem.
Houve também, durante o fim de semana, vozes que se insurgiram contra a companhia de eletricidade que opera a rede da Maui Electric, a Hawaiian Electric.
A empresa foi acusada de não ter implementado um plano de emergência para reduzir a possibilidade de incêndio perante as condições atmosféricas; por exemplo, segundo reportou o Washington Post, a companhia não desligou o fornecimento de eletricidade nas áreas onde se esperavam as rajadas de vento mais fortes e havia risco significativo de incêndio.
A Maui Electric respondeu via porta-voz, que disse à CBS News que foram tomadas algumas medidas para mitigar o risco. Mas o início da semana trouxe um processo legal instaurado contra a empresa, em que os queixosos alegam que os fogos foram causados pelas faíscas de cabos de eletricidade mandados ao chão pelos ventos fortes.
O processo investigativo será longo, à medida que as autoridades tiram cadáveres dos escombros.
“Aconteceu muito rápido, tudo explodiu, carros, edifícios, estava tudo em chamas”, disse a residente Brittany Harris ao Los Angeles Times. “As pessoas atiraram-se ao mar para escapar, mas até no oceano havia gente a morrer por inalação de fumo”, afirmou. “A minha amiga, cujo marido é polícia, disse que havia corpos por todo o lado. Há corpos em cima das árvores.”
O horror anda de mão dada com a fúria. “Houve avisos suficientes? Não me parece”, clamou Sefo Rosenthal. “Se as pessoas têm de se atirar à água, isso não é aviso suficiente.”
O legado português no Havai
Maui é uma das quatro ilhas onde há forte presença de lusodescendentes, com um longo historial de mayors de origem portuguesa e influência na gastronomia. No arquipélago, que tem 1,442 milhões de pessoas, estima-se que cerca de 10% da população tenha origem portuguesa, oriunda sobretudo da Madeira e dos Açores.
Durante o fim de semana, o ministério dos Negócios Estrangeiros confirmou que há lusodescendentes incontactáveis em Lahaina. Aguarda-se que as autoridades havaianas publiquem a lista de vítimas mortais para saber se entre elas estão pessoas de origem portuguesa.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
Crédito da imagem: Paula ramon / AFP