Franz Beckenbauer era um jovem promissor futebolista do Bayern Munique, com apenas 22 anos, quando em 1968 se deslocou Viena e foi fotografado junto a um busto do antigo imperador [kaiser, na tradução para o alemão] austríaco Franz Josef I.
E assim nasceu “O Kaiser”, a alcunha daquele que se tornaria um líbero de eleição, um treinador multicampeão e um dirigente ímpar. A lenda do futebol alemão e mundial disse adeus aos 78 anos.
Nascido a 11 de setembro de 1945, no seio de uma família de operários que ajudou a reconstruir Munique, após o fim da II Guerra Mundial, o pequeno Franz Anton Beckenbauer começou a jogar futebol num clube da cidade onde nasceu, o SC Munique 1906.
Tinha seis anos e tentava imitar o ídolo, Fritz Walter, o goleador e herói do título mundial conquistado pela Alemanha Ocidental em 1954. O futebol “comia-lhe” os sapatos e o pai reclamava porque não tinha dinheiro para comprar outros – a história faria de Franz uma lenda e do pai o seu maior apoiante.
A maior ambição era representar o Munique 1860, na altura o maior clube da cidade, mas um jogo quando tinha 13 anos mudou tudo. Nesse dérbi, um adversário deu-lhe uma chapada e decidiu que, a partir daquele momento, não já queria jogar pelos azuis de Munique e tentou de tudo para entrar no rival, os roten [vermelhos] do Bayern.
“Foi o destino que quis que nos confrontássemos e me tornasse num jogador de vermelho em vez de azul”, contou Franz Beckenbauer numa das muitas entrevistas em que recordou a infância futebolística.
Entrou no Bayern Munique em 1959 e a estreia aconteceu em 1964, no segundo escalão do futebol alemão. Jogou a avançado e marcou um grande golo logo nos minutos iniciais de um jogo em que mostrou todo o talento que fez dele um jogador ímpar.
Foi recuando no terreno e revolucionado os esquemas táticos na defesa e no meio-campo. Bom ofensivamente e com uma visão de jogo muito inteligente para o tradicional defesa-central, deu origem a um novo conceito, o líbero.
Desde trás, Beckenbauer orquestrava os ataques da equipa com passes longos com a parte exterior do pé, que passaram a ser a movimentação que o melhor caracterizou. Com ajuda do talento goleador de Gerd Müller e da segurança do guarda-redes Sepp Maier, ajudou o Bayern a subir à Bundesliga. Na época seguinte, o clube bávaro terminou o campeonato em terceiro lugar, venceu a Taça da Alemanha e ergueu a Taça das Taças. Nada mal para um jovem de 22 anos.
Nessa altura, Beckenbauer era a personificação futebolística de como a idade é apenas um número. No Bayern fez-se grande e ajudou o emblema bávaro a ser maior ainda. Afinal, antes dele, o clube tinha apenas ganho um campeonato em 1932 e uma Taça da Alemanha em 1957.
No total, o Kaiser fez 584 jogos pelo Bayern, clube que representou durante 30 anos e pelo qual conquistou 17 troféus.
Despediu-se dos relvados em 1983 com: duas Bola de Ouro (1972 e 1976), cinco títulos da Bundesliga, quatro Taças da Alemanha e três Taças dos Clubes Campeões Europeus (atual Liga dos Campeões), além de um Campeonato do Mundo (1974) e um Campeonato da Europa (1972) pela Alemanha, que deixou ao fim de 103 internacionalizações.
Liderou a mannschaft e o Bayern Munique com êxito
Beckenbauer ainda seguiu Pelé na experiência norte-americana e ajudou o New York Cosmos a ganhar três títulos em quatro anos antes de regressar à Alemanha, para jogar no Hamburgo. No entanto, a idade e as lesões só o deixaram participar em 28 jogos em dois anos. Tentou voltar em grande novamente em Nova Iorque, mas abandonou logo depois e assumiu o comando da seleção alemã após o fracasso da Alemanha Federal no Euro84.
Beckenbauer é um dos três campeões do mundo como jogador e treinador, juntamente com o francês Didier Deschamps e o brasileiro Mário Zagallo, que morreu na passada sexta-feira. Depois de ter capitaneado a Alemanha e levantado o troféu em casa, em 1974, liderou a mannschaft até à final do México 1986, que perdeu para a Argentina de Maradona.
Acabou por se vingar quatro anos depois no Itália 1990, vencendo os argentinos por 1-0. Deixou depois a seleção alemã para orientar o Marselha e o seu Bayern, antes de se sentar à secretária como dirigente.
Afinal, quem melhor do que aquele que é considerado o melhor jogador alemão de todos os tempos para gerir os destinos do Bayern Munique? Assumiu a presidência em 1994 e ficou até 2009, ano que finalmente conseguiu deixar a cadeira do poder ao fiel escudeiro Karl-Heinz Rummenigge. Tornou-se então presidente honorário, cargo que desempenhou até ao fim dos seus dias.
“Engolido pelo sistema” e traído pelo coração
Principal responsável pela organização do Euro 2006, não se livrou das acusações de fraude, gestão danosa, lavagem de dinheiro e apropriação indevida, por um tribunal suíço, dez anos depois. Admitiu “erros”, mas sempre negou a compra de votos e o caso prescreveu.
Mais tarde ainda seria suspenso pela FIFA, por 90 dias, por se recusar a participar na investigação sobre a a atribuição do Mundial 2018 à Rússia e do Mundial 2020 ao Qatar.
Um documentário exibido pelo canal alemão ZDF – “Como Beckenbauer foi engolido, ou se deixou engolir, pelo sistema que manda no futebol”- deixou grande parte da opinião pública alemã contra o seu ídolo e levou a alguns desabafos do Kaiser, que perdeu um filho em 2015 e foi operado duas vezes ao coração entre 2016 e 2017.
“Tudo nos últimos anos me afetou muito. As cirurgias, a história de 2006. Vejo que, no fim de contas, ficou claro que não houve nada, mas foi duro”, confessou em entrevista ao Bild em 2020, desde Aigen, a idílica localidade austríaca onde vivia, celebrizada no cinema pela família Von Trapp, no filme A Família Trapp de 1965.
A 31 de dezembro, o irmão preparou o mundo para a notícia da morte. Num documentário intitulado Beckenbauer, que será emitido nos próximos dias, Walter Beckenbauer avisou que a saúde do Kaiser tinha “altos e baixos constantes” e que o mínimo sobressalto emocional poderia levá-lo ao encontro de… Pelé (1940-2022), Maradona (1960-2020), Cruyff (1947-2016) ou Eusébio (1942-2014).
Aconteceu na noite de domingo, 7 de janeiro de 2024. Segundo a mulher e os dois filhos, “morreu pacificamente, a dormir”.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal