Nos últimos dez anos, a economia portuguesa emergiu de uma situação difícil (mais uma na sua história recente), saiu de um pesado programa de ajustamento económico e financeiro (o da troika e do governo PSD-CDS) imposto aos residentes na sequência da bancarrota de 2011, estava o governo PS no poder desde 2005.
A austeridade da troika, como foi apelidada, desvalorizou rendimentos (foram cortados salários e pensões), empobreceu a população que, dizia o governo de então, “vivia acima das suas possibilidades”, produziu muito desemprego, sobretudo jovem, subiu “enormemente” os impostos, fez disparar as falências de empresas e a emigração, interrompeu a natalidade, debilitou serviços públicos (reflexo de cortes profundos na despesa orçamental).
Mas, em simultâneo, a onda de saneamento redundou num país muito mais barato e apetecível aos olhos do capital e investimento estrangeiro, à procura de custos de contexto menos gravosos, salários mais baixos, incentivos fiscais e bom tempo e gente amena.
Também se reduziu a dívida pública e privada, mas esta era tão elevada, que ainda hoje preocupa.
Os bancos, que fizeram parte do problema da bancarrota, também se organizaram, mas as agências de rating continuam a sinalizar que são mais frágeis do que alguns dos seus pares europeus – podem sofrer (eles e o país) se o crédito malparado regressar.
Foi nessa altura, no fim da austeridade e com o país em ambiente de saldos, em 2013-2014, que o turismo explodiu a sério, que vários fundos e investidores imobiliários começaram a tomar conta dos centros das cidades (Lisboa e Porto são disso exemplo), que começou a apertar a crise da habitação. Uma crise contra a qual o governo tem anunciado medidas, mas que não parece ter fim à vista.
Entre 2015 e 2019, Portugal tentou recompor-se. Foi nesta altura que ganhou tração o discurso em prol dos investimentos em inovação, conhecimento, amigos do ambiente.
Portugal posicionou-se, assim, para poder maximizar o fluxo dos fundos europeus. Para um País desvalorizado e descapitalizado, esse maná tem sido essencial, apesar dos atrasos.
Em 2020, o mundo sofreu uma interrupção inédita: a pandemia de covid-19 que congelou atividades e o trânsito de pessoas. O Portugal do turismo explosivo, o novo garante da criação de emprego e do desemprego historicamente baixo, teve de esperar, novamente.
Só neste ano é que a pandemia foi oficialmente decretada como terminada, mas no início de 2022, ainda estava o mundo (e, no nosso caso, a Europa) a aproveitar ao máximo o período de taxas de juro quase zero, em alguns casos negativas, até acontecer a guerra da Rússia contra a Ucrânia.
O longo período de taxas de juro nulas (desde 2016), que muitos avisaram não poder durar para sempre, acabaria em meados do ano passado com o início de uma subida muito agressiva e rápida das taxas de juro por parte dos bancos centrais. Razão: o regresso da inflação elevada (chegou a superar os 10% na Zona Euro).
Apesar de, nos primeiros meses, ser inflação maioritariamente importada, o Banco Central Europeu (BCE), ainda hoje, não tem intenções de parar o aperto nos juros. Diz que estamos numa segunda fase da crise inflacionista.
A inflação alta enraizou-se no tecido económico, insuflou os lucros de muitas empresas, além do que poderia ser explicado apenas pelos fundamentais e pela razoabilidade das previsões então feitas, e começou a puxar para cima os salários, com os trabalhadores a tentarem não perder poder de compra. Este movimento mais amplo e disseminado é intolerável para o BCE, difícil de controlar.
Os trabalhadores mais pobres e vulneráveis têm sido apoiados pelos governos, mas até isto pode estar em causa devido ao “imperativo” das “contas certas”.
Em 2024, o Pacto de Estabilidade voltará a vigorar em pleno. Se é verdade que Portugal está a conseguir entregar défices públicos próximos de 0% do Produto Interno Bruto (PIB), a dívida continuará bem acima dos proibitivos 100%, quando a regra-mãe do Pacto diz que no máximo deve ser de 60%.
Bem-vindos a 2023
E é aqui que hoje estamos, é este o estado da economia que vai a debate no Estado da Nação. Uma economia (Estado e empresas) que se está a desendividar, com as famílias a tentarem ainda recuperar muito do que perderam no tempo da troika. Problema: todos acabaram por ser apanhados na curva pela subida em flecha dos juros.
Hoje, é uma economia que, num primeiro momento, ainda conseguiu reverter a seu favor a inflação, crescendo muito mais do que se esperava, apoiada na faturação das empresas com o consumo (o caso dos alimentos e da energia é paradigmático), no turismo, mas muito menos no desejável investimento em coisas novas do conhecimento, da tecnologia e coloridas a verde, as que, dizem os políticos, podem garantir novos empregos no futuro.
Os fundos europeus, as âncoras desta nova ideia de progresso, embora tenham começado a fluir, faltaram em 2022. Há um atraso grande que falta recuperar, o que até motivou crispação entre o governo e o Presidente da República.
Estamos em julho de 2023 e a segunda fase da inflação, como diz o BCE, é, na realidade, a fase de aperto inaudito para as famílias. O consenso dos analistas e economistas é claro: com mais aperto, menos confiança no futuro e incertezas crescentes sobre a criação de emprego no futuro próximo, a economia vai ressentir-se. Já está, aliás.
As contas públicas, movidas pelo fluxo amplo de receita fiscal e contributiva em 2022 e início deste ano, também não tardarão a ficar condicionadas, novamente. Serão pedidos novos esforços e novas poupanças podem ter de acontecer para manter as “contas certas”, como diz o ministro das Finanças, Fernando Medina.
Para as famílias, as “contas certas” são outra história. A prestação da casa deu um salto monumental. De acordo com um levantamento feito pelo Dinheiro Vivo, a prestação média dos novos empréstimos para compra de casa terá aumentado 50% ou 60% no último ano até julho, indicam dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Hoje, essa dívida ao banco ronda os 545 euros por mês ou mais. Em janeiro, era de 346 euros.
A taxa de juro mensal média dos novos empréstimos à habitação (computada a partir das Euribor) estará agora acima dos 4%, facilmente a caminho dos 5%. É preciso recuar aos anos de chumbo da troika (a 2012, por exemplo) para chegar a valores deste calibre (4,7%).
O litro de gasolina 95, outro bem importante para inúmeras famílias, recuou apenas 4 cêntimos face a janeiro de 2022, quando ainda não havia guerra. Em julho, este custo final por litro rondava os 1,67 euros, segundo contas do Dinheiro Vivo com base nos dados do governo, da Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG).
Economia e pessoas ressentem-se
Com tudo isto, a economia já se ressente.
“A segunda metade do ano pode afigurar-se mais adversa fruto das diversas pressões sobre a conjuntura: inflação elevada e taxas de juro crescentes, a que se junta agora um provável agravamento da disponibilidade de crédito devido a maior turbulência no sistema financeiro”, observa o gabinete de estudos económicos (NECEP) da Universidade Católica Portuguesa, coordenado por João Borges Assunção.
“O consumo privado e o investimento parecem continuar com uma dinâmica frágil e contingente”, conclui o economista.
Frágeis parecem estar os indicadores mais avançados (que antecipam o futuro próximo) do desejado investimento: as vendas de cimento estão a cair de forma consecutiva desde janeiro, mostram dados das empresas dominantes do setor – Secil e Cimpor – e do gabinete de estudos das Finanças (GPEARI).
O INE corrobora este quadro. O número de licenças para construir e renovar casas (habitação) também começou a afundar: em maio, estavam a cair mais de 13%.
O mesmo INE também mostra que os salários líquidos dos trabalhadores por conta de outrem parecem estar a vacilar. No primeiro trimestre de 2022, ainda antes do efeito da guerra, o rendimento final médio que os empregados levavam para casa crescia mais de 4%. Um ano depois, o avanço ficou-se nuns magros 0,1%.
Salva-se o turismo, claro. Prestes a bater um recorde e a superar os níveis pré-pandemia, o número acumulado de hóspedes (turistas e outros clientes) em hotéis e similares (incluindo alojamento local) está em quase 11 milhões de pessoas. O valor supera a população total de Portugal e está 26% acima face a igual mês do ano passado. As receitas (em euros) estão a acompanhar.
Fonte e crédito da imagem: Diário de Notícias / Portugal