A Turquia vai ter, pela primeira vez na história, uma segunda volta nas presidenciais. Mas aquilo que à partida podia parecer um revés para o atual chefe de Estado, Recep Tayyip Erdogan, há 20 anos no poder e à procura de um terceiro mandato consecutivo, visto ao pormenor acaba por mostrar que ele não está tão ultrapassado como se previa.
E que a oposição, mesmo unida em torno da candidatura de Kemal Kilicdaroglu, parece ainda estar longe de conseguir bater o homem forte do país.
As sondagens pré-eleitorais davam a vitória a Kilicdaroglu, nalguns casos até à primeira volta, mas nas urnas os cerca de 64 milhões de eleitores turcos demonstraram mais uma vez o seu apoio a Erdogan.
Segundo os resultados preliminares, e com a participação recorde de 88,8%, o presidente de 69 anos teve 49,5% dos votos e ficou à beira de fazer já a festa, diante dos 44,9% de Kilicdaroglu, cinco anos mais velho. Nas duas anteriores eleições presidenciais por sufrágio universal, em 2015 e 2018 (antes o chefe de Estado era eleito pelo parlamento), Erdogan tinha vencido à primeira volta.
O presidente não conseguiu repetir o feito, mas parte como favorito para a segunda volta. Não só porque ficou à beira da vitória este domingo, mas porque o seu Partido de Justiça e Desenvolvimento (AKP) foi o mais votado para a Grande Assembleia Nacional.
Elegeu 267 dos 600 deputados e a Aliança Popular, de que faz parte, alcançou a maioria (322 representantes). A Aliança da Nação conseguiu apenas 213 deputados, dos quais 169 do Partido Republicano do Povo (CHP) de Kilicdaroglu.
Nas duas semanas de campanha eleitoral que se seguem até à segunda volta de 28 de maio, Erdogan irá sem dúvida reiterar a ideia de que não faz sentido, tendo a maioria no parlamento, entregar a presidência à oposição.
E que o cenário de um governo dividido será o pior para a Turquia, que enfrenta uma crise económica causada pela inflação elevada e está ainda a recuperar dos sismos de fevereiro que causaram a morte a mais de 50 mil pessoas.
Estes acabaram por não ter o impacto eleitoral que se previa: o opositor venceu numa das regiões mais afetadas, Hatay, mas o presidente venceu na outra, Ganziatep. E nas parlamentares, o AKP de Erdogan venceu em ambas.
Sem uma maioria na Grande Assembleia Nacional, Kilicdaroglu não conseguirá avançar com a sua grande promessa eleitoral – a de voltar ao sistema parlamentar que, em 2018, deu lugar ao sistema presidencialista.
Outra promessa do candidato da oposição é a independência do sistema judicial, que os críticos acusam Erdogan de usar para calar os dissidentes, assim como dos media. Caso acabe por dar a volta ao resultado, Kilicdaroglu terá que negociar a pulso qualquer mudança, sendo que a tarefa já seria difícil à frente de uma aliança de seis partidos de vários quadrantes políticos – do centro-esquerda até à direita nacionalista.
O facto de Kilicdaroglu ter ganho as presidenciais em Istambul e Ancara, mas o AKP ter sido o partido mais votado em ambas as cidades nas parlamentares, mostra que apesar de estarem abertos as mudanças, os turcos não parecem querer que estas sejam radicais e não confiam na aliança de partidos da oposição.
Apesar do desaire, Kilicdaroglu mostrava-se esta segunda-feira confiante de que ainda era possível vencer: “Não desesperem. Vou seguir de cabeça erguida. Vou explicar tudo o que aconteceu. E depois, vamos erguer-nos e vencer estas eleições juntos”, escreveu no Twitter. “No final de tudo, será o que a nossa nação decidir”, referiu.
O presidente reagiu também nas redes sociais. “Com a maturidade que mostrou ontem [domingo], a Turquia mostrou que é um dos países com a cultura democrática mais avançada do mundo”, escreveu no Twitter. “Enquanto um político que nunca conheceu outro poder do que a vontade da nação e nunca se desviou da direção desenhada pela nação, respeitamos esta vontade manifestada nas urnas”, acrescentou, referindo-se à necessidade de ir a uma segunda volta.
“Vamos emergir vitoriosos das eleições de 28 de maio, aumentando a votação que alcançámos a 14 de maio, e esperamos alcançar um sucesso histórico”, referiu. É o seu desejo estar no poder quando, em outubro, se festejar o centenário da República.
O presidente contará novamente com a máquina estatal para aumentar as probabilidades de sucesso. A cinco dias das eleições aumentou os funcionários públicos (mais 45%, depois de uma inflação oficial de 80% no ano passado), além de ter reduzido os preços da eletricidade e dado um mês de gás natural grátis.
Erdogan conta também com o apoio dos media, estimando-se que 90% estejam nas mãos do Estado ou de aliados, que lhe deram mais tempo de antena do que ao principal rival.
Fazedor de reis?
Sinan Ogan, o terceiro candidato na corrida (um quarto desistiu a três dias das eleições, mas ainda obteve quase 240 mil votos), conseguiu 5,2% dos votos nas presidenciais – mas a aliança que liderava, a Aliança Ancestral, não conseguiu representação parlamentar.
Candidato nacionalista e com raízes num partido da extrema-direita que apoia Erdogan, em teoria a maior parte dos seus 2,8 milhões de votos devem acabar por ir parar ao atual presidente. Mesmo se Kilicdaroglu conta também, entre os partidos que fazem parte da sua Aliança da Nação, com o apoio de outro partido da direita radical.
Ogan, um antigo académico de 55 anos, disse esta segunda-feira numa entrevista à Reuters que irá ouvir as bases antes de decidir qual dos dois candidatos apoiar, deixando contudo claro que só apoiará Kilicdaroglu se ele aceitar não fazer qualquer cedência ao partido pró-curdo que esteve ao seu lado. “A luta contra o terrorismo e enviar de volta os refugiados são as nossas linhas vermelhas”, afirmou.
O Partido Democrático dos Povos (de esquerda) apoiou o candidato da oposição nas presidenciais, enquanto o Partido da Causa Livre (Hüda-Par, pró-curdo islamita) apoiou Erdogan. Os curdos representam um quinto da população e cerca de 10% dos 64 milhões de eleitores, pelo que se pensava que o apoio do principal partido pró-curdo seria vantajoso para Kilicdaroglu.
Mas Erdogan aproveitou para alegar que a oposição estava nas mãos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), uma organização considerada terrorista que tem lutado pela independência desta região.
Reações internacionais
Apesar de algum caos na contagem de votos, com a oposição a queixar-se de que os votos nas zonas em que tinha em princípio maioria não estavam a ser revelados, os observadores internacionais dizem que a votação foi limpa e transparente. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deu os parabéns aos eleitores turcos pela participação recorde.
“É um sinal claro de que os turcos estão comprometidos no exercício dos seus direitos democráticos e votam e, também, que dão valor às instituições democráticas”, disse.
As negociações para a adesão da Turquia à União Europeia, que se candidatou em 1987, estão suspensas desde 2018, não tendo a relação entre Erdogan e Bruxelas sido sempre a melhor. Kilicdaroglu defende uma aproximação aos 27, na expectativa de relançar as negociações. Mas Von der Leyen não se quis comprometer, dizendo que as eleições “ainda estão em aberto”.
Do lado da Rússia, que Kilicdaroglu acusou de ingerência dias antes da votação, o Kremlin disse esperar que os laços entre os dois países aumentem, independentemente do resultado eleitoral. Ao contrário da relação com os europeus, Erdogan fortaleceu nos últimos anos a relação com os russos. Apesar de a Turquia ser membro da NATO, Ancara mantém boas relações tanto com Moscovo como com Kiev.
Grande Assembleia Nacional
Além do presidente, os eleitores foram chamados a eleger os 600 membros da Grande Assembleia Nacional. Treze partidos, de três alianças, estarão representados.
Aliança do Povo: A aliança liderada pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan conseguiu uma maioria de 322 deputados. Só o AKP, o mais votado, elegeu 267 representantes (entre eles quatro do Partido da Esquerda Democrática e do pró-curdo Partido da Causa Livre, que iam nas suas listas). O Partido do Movimento Nacionalista elegeu 50 deputados e o Novo Partido do Estado Social elegeu cinco.
Aliança da Nação: A oposição, unida em torno de Kilicdaroglu, conquistou 213 lugares na Assembleia, dos quais 169 foram para o seu Partido Republicano do Povo (CHP). Dentro das listas do CHP ia o Partido Democrático, o Partido da Democracia e Progresso, o Partido do Futuro e o Partido da Felicidade, que juntos elegeram 34 deputados. O Partido do Bem, o único que concorreu separado dentro da aliança, obteve 44 lugares.
Aliança Trabalho e Liberdade: A aliança de esquerda ganhou 65 deputados, com o Partido da Esquerda Verde a ganhar 61 e o Partido dos Trabalhadores da Turquia outros quatro.
Aliança Ancestral: A aliança da extrema-direita que apoiava Ogan teve só 2,4% dos votos e não elegeu deputados. Precisava, no mínimo, de 7%.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
Crédito da imagem: Adem Altan / AFP