Cristina Dascalescu: “O fado na Roménia fascina, as salas ficam cheias quando fadistas portugueses lá vão”

O Instituto Cultural Romeno em colaboração com a Fundação Amália Rodrigues organiza esta quarta-feira em Lisboa, às 17h, o concerto “Homenagem a Amália. Entre Doina e Fado, entre Dor e Saudade – duas sensibilidades coletivas” pela fadista romena Cristina Dascalescu.

Que fados vai cantar hoje na Casa-Museu Amália Rodrigues?

A título de homenagem, escolhi: Fado Amália, Foi Deus, Estranha Forma da Vida, Soledade, Maria Lisboa, Cheira Bem a Lisboa, Fadinho Serrano. Gostaria de poder cantar mais fados da Amália tal como: Povo que lavas no rio, Com que voz, Lágrima, Primavera, Gaivotas… Tempo e espaço são limitados.

Nos ensaios, Luís Ribeiro, o guitarrista que acompanhou Amália nos últimos cinco anos da sua carreira e que também me acompanhará neste concerto, juntamente com Pedro Pinhal, revelou-me outros dois fados que certamente aprenderei: Acho inúteis as palavras e Meu nome sabe-me a areia. Eu gosto que haja boa poesia nos textos dos fados de Amália.

Tirando Amália, quando pensa em fadistas, de que nomes gosta mais?

Amália foi, é e continuará a ser fonte de inspiração para muitos fadistas. Os fadistas da nova geração que ouço com admiração também começaram com Amália, e gostaria de mencionar aqui algumas vozes femininas: Mariza , Carminho, Ana Moura, Dulce Pontes, Cuca Roseta, Sara Correia, Yola Dinis, até a mais nova Tereza Landeiro, mas também a ilustre Maria Teresa de Noronha.

E como vozes masculinas: Camané, Luís Ribeiro, António Zambujo, Marco Rodrigues, mas também Alfredo Marceneiro e Carlos de Carmo da velha geração, etc. Também gostei muito de Salvador Sobral e sua irmã Luísa Sobral, quando ganharam o Eurovisão com o Amar Pelos Dois.

Lembra-se de como nasceu o seu interesse pelo fado?

Tudo começou em outubro de 2010, quando li um artigo que falava do programa que Portugal preparava para a entrada do Fado no Património Imemorial da Humanidade para o ano seguinte. No final do artigo encontrei o Fado Português.

A voz de Amália, a guitarra portuguesa, a letra “O Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava”, comoveram-me de tal forma que prometi a mim mesmo que viajaria para Portugal para ouvir ao vivo fado. Tudo começou com ele, foi o primeiro fado que aprendi a cantar, foi o primeiro passo no caminho dos descobrimentos lusitanos…

Os romenos gostam de fado?

O fado na Roménia fascina, as salas ficam cheias quando fadistas portugueses como Amália (três vezes na Roménia!), e hoje Mariza, Ana Moura, Dulce Pontes e outros vêm atuar na Roménia. Quando comecei a realizar concertos de fado na minha cidade, Bacau, fiquei surpreendida ao ver salas cheias. Espero que o meu papel tenha sido também o de propagadora do fado especialmente para a nova geração.

Vai também cantar músicas de Maria Tanase. Podemos dizer que é a Amália romena?

O meu concerto é sobretudo uma homenagem a Amália, mas acho que existe uma grande semelhança entre Amália e Maria Tanase. Maria Tanase é para os romenos o que Amália Rodrigues é para os portugueses. São duas grandes artistas que ultrapassaram o seu tempo, e fizeram história, cada uma reinventando a música tradicional do seu país.

Eram duas lendas vivas… duas fontes de inspiração, beleza, força e sensibilidade, com as quais nós, artistas de hoje, temos muito a aprender. É por isso que neste concerto cantarei duas canções do repertório de Maria Tanase para ilustrar musicalmente a proximidade entre elas e para as colocar frente a frente, na mesma casa, como talvez nunca tenham estado.

Certamente, as duas grandes artistas soubessem da existência uma do outra, mesmo que nunca se tenham encontrado.

Doina é a música popular romena. Temas são semelhantes ao fado?

“Diz-me de onde vens, para eu saber que músicas trazes contigo? Sou da Roménia e trago comigo a doina romena.” Depois de vários anos de estudo, posso afirmar que a doina e o fado têm mais características em comum do que parece à primeira vista. Ambos os géneros musicais entraram no Património Imaterial da Humanidade, a doina em 2009 e o fado em 2011.

Doina é também uma canção da saudade e da solidão, do sofrimento e da alienação, do amor infeliz e da velhice difícil e expressa uma ternura especial de sentimentos. É uma canção ancestral. No seu passado histórico, tudo o que os romenos cantavam era chamado “doina”. Por isso, o verbo “a doini”, era equivalente a “cantar” – “cantar a saudade”/ “a cânta de dor”.

O camponês romeno cantava a doina em todas as circunstâncias da vida, sozinho na intimidade do seu lar, para curar a sua alma, especialmente quando estava trabalhando na terra. Doina também expressou vários aspetos da vida social, relembrando também períodos em que os romenos foram dominados por vários impérios (otomano, austro-húngaro, russo).

A melodia de uma doina autêntica não tem caráter fixo, é impossível ser cantada duas vezes da mesma maneira, porque o intérprete improvisa de acordo com o seu estado da alma. Doina é uma criação lírica rural, ao contrário do fado, que é uma criação lírica urbana.

Sei que és professora de Literatura e tradutora. O que já traduziu e português para romeno?

Então, no início encontrei uma frase de Amália: “O fado é um mistério. Nunca ninguém vai conseguir explicá-lo!”, o que intrigou a minha curiosidade. Foi exatamente este facto que me fez ambicionar traduzir, para mim, Para Uma História do Fado, de Rui Vieira Nery, para que pudesse compreender “O Que é o Fado?”.

Depois, aos poucos, acabei por traduzir para o romeno Morreste-me, de José Luís Peixoto, Fado Alexandrino, de António Lobo Antunes (juntamente com o poeta e tradutor Dinu Flamand), e Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado (que aguarda uma editora para publicar). E continuarei a traduzir literatura portuguesa.

A latinidade comum de romenos e portugueses une os dois países?

Embora geograficamente os dois países estejam nos extremos da latinidade, eles compartilham o semelhante espetro emocional, uma sensibilidade especial, expressos através destas canções tradicionais – fado e doina – que são a expressão da alma de povos em que o sentimento dominante é para os portugueses “saudade” e para os romenos “dor”.

Provavelmente, no substrato arcaico da latinidade, os povos daquela língua comum sentiram a necessidade de expressar os momentos essenciais da vida através da palavra ou da melodia, recorrendo a algumas raízes profundas, sobre destino, dor, ausência, amor, vazio, esperança.

Encontramos também etimologias surpreendentes para “dor” e “saudade”. Que vêm do latim popular, mas também do galego, do provençal, do catalão ou de outras variantes do latim popular local. Inclusive desde a adolescência da língua portuguesa. Cantar tais textos e tais melodias é também uma operação arqueológica da alma coletiva.

Fonte: Diário de Notícias / Portugal

Crédito da imagem: www.e-cultura.pt