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Como estabilizar uma proteína pode ser a chave para travar a Alzheimer

Uma equipa de investigação do I3s, do Porto, está a estudar o papel neuroprotetor da transtirretina. Estabilizando os níveis dessa proteína poderá haver melhoria nas células. Mas os neurologistas advertem para a importância de – no caso português – tratar os doentes a montante.

Primeiro a perda de memória, em pequenos registos, depois um “apagão” que faz com que os doentes deixem de se reconhecer a si próprios. A doença de Alzheimer – cujo Dia Mundial se assinalou esta quarta-feira – é um dos flagelos da longevidade.

A média da OCDE é de 14.8 casos por cada mil habitantes, mas para Portugal a estimativa é de 19.9. De acordo com o último relatório, a estimativa do número de casos com demência para Portugal ascende a mais de 205 mil pessoas, número que subirá para os 322 mil casos até 2037.

A investigadora Márcia Liz — que há 20 anos se dedica a estudar várias doenças neurodegenerativas — acredita que podemos estar perto de conseguir uma importante chave para decifrar e tratar a doença de Alzheimer. Tudo passará pela introdução de anticorpos numa proteína, tal como revelam os ensaios clínicos mais recentes.

Esta já longa viagem começou ainda durante o doutoramento, quando se dedicou a estudar a proteína transtirretina, envolvida na “doença dos pezinhos”, o mesmo tipo de proteína que agrega e leva à neurodegeneração.

No pós doc, começou a estudar lesões do sistema nervoso central, e quando iniciou uma linha de investigação mais independente quis perceber melhor o efeito dessas proteínas no sistema nervoso central e no sistema nervoso periférico.

No caso da doença de Alzheimer, não descansa até saber o que fazem aos neurónios. E isso em duas frentes, uma com a sua equipa, outra em parceria com a investigadora Isabel Cardoso. Foi ela, de resto, quem descobriu que a trantirretina “tem um papel neuroprotetor em Alzheimer. Ou seja, os doentes têm níveis diminuídos desta proteína. E a ausência dela piora a doença”.

Criar anticorpos que “limpem” as células

“As maiores estratégias que têm vindo a ser desenvolvidas é fazer anticorpos que reconhecem o ABeta e, no fundo, fazem uma limpeza desses agregados da célula. E isso leva a uma diminuição da progressão da doença”.

Porém, “apesar de tirar de lá os agregados, já houve disfunção desse neurónio. Por isso, essa neurodegeneração que ocorreu, precisa de ser revertida. Além disso, quando um doente vai ao médico e é diagnosticado pelos sintomas (perda de memória), já houve morte neuronal. E então a vantagem de estudar modelos animais (como os ratinhos) é que podemos ir a diferentes estádios e tentar descobrir aquilo a que chamamos eventos iniciais”.

É a fase em que o neurónio está disfuncional mas ainda não morreu. “Essa será a grande chave. Esses anticorpos, essa terapia, é importantíssima para limpar, o tal Abeta, mas também para perceber o que é que está a acontecer dentro da célula para definir novas estratégicas”.

A investigadora do Instituto de investigação e Inovação em Saúde (I3s) reputa esse avanço de “importantíssimo”, pela menor evolução da doença, aliado à prevenção de risco.

Márcia Liz é investigadora do I3s
Márcia Liz é investigadora do I3s

“A nossa investigação parte do básico: perceber quais são os mecanismos que levam à doença, em diferentes células do cérebro, e perceber o que é que acontece a nível celular e molecular”, adianta Márcia Liz. E isso, no futuro, será percetível através de uma recolha de sangue, em que as alterações revelem um risco de Alzheimer. Mas para isso é preciso ainda fazer “muita investigação mais básica, ou seja, o que acontece às células do cérebro”.

À procura de financiamento

Além desse projeto (em parceria com Isabel Cardoso), Márcia Liz continua empenhada na sua própria investigação, em que estuda muito “o esqueleto do neurónio, toda a sua estrutura e componentes. E sabe-se que algumas proteínas levam à formação de umas estruturas, como se fossem oclusões dentro das células, levando a que deixem de funcionar, antes de morrerem.

O tal evento inicial”, explica ao DN. “E o que eu descobri foi um recetor – que está ligado também à neuroinflamação que ocorre no cérebro – que está envolvido neste processo desses agregados a induzirem a disfunção dos neurónios – e isso leva à perda das tais sisapses. E é isso que faz com que o neurónio deixe de funcionar”.

A investigadora está agora na busca de financiamento para pôr em prática o projeto. De resto, “há péptidos que são antagonistas desse recetor e que já são usados em doentes de HIV, porque esse tal recetor é o mesmo que o HIV usa para entrar nas células”.

De resto, esses doentes também revelam muitas vezes perda de memória e cognitiva. “E há péptidos que foram desenhados para fazer o targeting desse recetor e mostram que há uma melhoria do neurónio. A tal proteína de agregação não faz a disfunção neuronal e bloqueia, num estadio inicial da doença”.

Márcia Liz tem esse trabalho iniciado em células do hipocampo (responsáveis pela memória), com ensaios in vitro. “Como nós temos modelos animais, tanto de Parkinson como de Alzheimer, o que eu quero fazer agora é testar in vivo: como é que atua, onde é que atua, e principalmente se melhora a função cognitiva”. No caso do Parkinson, a investigadora já conseguiu alguns resultados. E acredita que, no caso do Alzheimer, irá ter um resultado semelhante.

Márcia Liz licenciou-se em bioquímica e começou por trabalhar em biofarmacêutica, nos Estados Unidos da América. Quando regressou a Portugal iniciou um doutoramento no IBMC-Porto onde trabalhou com a proteína Transtirretina, que está envolvida numa doença neurodegenerativa, a Polineuropatia Amiloidótica Familiar.

“Esta doença tem um grande impacto em Portugal onde é conhecida como “doença dos pezinhos”. Durante o meu doutoramento tive oportunidade de passar temporadas em laboratórios em São Francisco e em São Paulo, o que foi muito enriquecedor para o meu currículo. Após o meu doutoramento iniciei um pós-doc, no IBMC-Porto, onde trabalhei na área da regeneração do sistema nervoso”.

Há 10 anos iniciou a sua linha de investigação independente e hoje trabalha como investigadora no i3S, onde líder uma equipa focada em identificar mecanismos que levam à disfunção dos neurónios no contexto de doenças neurodegenerativas.

“A procura de cuidados surge cada vez em idades mais precoces”

O neurologista Vítor Tedim Cruz observa algumas alterações na população portuguesa portadora da doença de Alzheimer. “O tipo de doentes que nos surgem muda sempre. O que acontece atualmente é que as mudanças de padrões, que antes levavam 20 anos (uma geração) a ocorrer, agora acontecem em muito menos tempo”, explica ao DN, enquanto reforça duas alterações dominantes:

“As pessoas estão de facto a manter responsabilidades familiares e profissionais até mais tarde, com rotinas mais exigentes, onde a saúde do cérebro é mais importante para o bem estar social. Ao fazê-lo, em vidas mais desafiantes até mais tarde, tendem a aperceber-se de dificuldades cognitivas mais cedo. A procura de cuidados surge por isso em idades relativamente mais precoces.”

“Como neurologistas temos de nos preparar para abordar e gerir, em conjunto com os médicos de família, sobretudo, um número maior de pessoas em risco para demência ou em fases iniciais”, sublinha Vítor Tedim Cruz. O neurologista lembra que a doença vascular cerebral “é o grande fator que contribui para o número de novos diagnósticos de demência”.

A título de exemplo, aponta: “Quem tenha tido um acidente isquémico transitório (um AVC sem sequelas neurológicas), tem um risco de 10% a 5 anos de vir a receber um diagnóstico de demência”. E nesse domínio, “há estudos de base populacional em Portugal que apontam para que a demência vascular corresponda a mais de metade das demências”.

Vítor Tedim Cruz, neurologista
Vítor Tedim Cruz, neurologista

Apesar de considerar que, por cá, a doença de Alzheimer será tão frequente como em outros países europeus, o neurologista insiste na pertinência de controlar os fatores de risco vascular. “Enquanto não acontecer, vamos continuar a ter um maior número de doentes com formas clinicamente mais graves ou mais precoces”, adverte.

Vítor Tedim Cruz não revela grande otimismo no que toca à investigação na áreas das demências, nomeadamente na doença de Alzheimer, onde identifica “duas dificuldades difíceis de ultrapassar:

“Os mecanismos fisiopatológicos que originam a doença são vários, e difíceis de estudar e modelar farmacologicamente; os fundos necessários para atingir resultados junto dos doentes são cerca de 1000 vezes superiores aos necessários para produzir resultados de dimensão biológica semelhante na área das doenças cardiovasculares ou oncologia”.

Mas apesar destas dificuldades, o facto é que o número de ensaios clínicos de fármacos com efeito modificador do curso da doença de Alzheimer “tem aumentando muito em número e na variedade de mecanismos da doença que procuram abordar”, confirma ao DN.

Em linha com as revelações da investigadora Márcia Liz, este neurologista confirma que “nos últimos 2 anos há pelo menos 4 moléculas com resultados positivos, o que não acontecia há cerca de 20 anos. Isto não quer dizer já que temos tratamento, mas sim que foi possível modelar os mecanismos fisiopatológicos que antes eram considerados inacessíveis ou irreversíveis”.

Sendo certo que cada país tem as suas particularidades, quando confrontado com o posicionamento de Portugal no que respeita à doença, o médico insiste na correlação com “a elevada prevalência de fatores de risco vascular por controlar (diabetes, hipertensão, dislipidemia, tabagismo, obesidade). Estes exercem um efeito antecipador da idade de início dos sintomas.

Na sociedade portuguesa discutimos pouco isto, mas já se sabe há alguns anos que o controlo efetivo dos fatores de risco vascular, entre os 40 e os 70 anos de idade, poderia reduzir em pelo menos 30% o número anual de novos casos de demência”.

Fonte: Diário de Notícias / Portugal

Crédito das imagens: Natacha Cardoso / Global Imagens