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Bairrada (também) é terra de grandes brancos

Recuamos apenas cem anos e damos com o mundo vinícola nacional a reorganizar-se da punição terrível da filoxera, que dizimou e condenou ao abandono as vinhas do nosso querido Portugal.

Hoje vivemos no conforto e solidez do maravilhoso mundo novo e quase não damos pelos gritos e lágrimas dos portugueses desses tenebrosos tempos.

No mar e em terra, foi a debandada geral. Foi assim pela Europa fora, abrangendo todo o Velho Mundo e os pressupostos da vida e do progresso mudaram radicalmente. Mesmo politicamente, as duras e gerais transumâncias não deixaram pedra sobre pedra.

Foram ficando e sobrevivendo as vinhas velhas e os velhos costumes, que hoje são as nossas grandes e absolutas referências enogastronómicas. A região da Bairrada foi ao longo de todo o penoso e duro processo de transformação a que nos deu os vinhos com que hoje enchemos o peito.

Aprendemos a chamar-lhes clássicos. Borgonha e Bordéus em França e Piemonte na Itália equiparam-se-lhe na história e na riqueza antológica da vinha. Temos contudo os nossos totens de que não abdicamos e apesar das modas veneramos com paixão.

charme da Bairrada prova-se, bebe-se e colecciona-se com amor e paixão. Estamos em tempo de Páscoa, que quer dizer passagem e transição e por isso fazemos-lhe o desafio importante e fundador de passar pelos vinhos brancos da Bairrada e pela cozinha secular, evanescentes desses outros tempos de míngua e dor. Sentemo-nos à mesa no modo festivo que os romanos nos ensinaram. Nunc est bibendum. Bebamos!

Venham as iscas!

Celebramos a Páscoa à mesa com delícias diversas e concentramo-nos nas primícias sacrificiais de sempre – cabrito e leitão – para nos alegrar a mesa. Na Bairrada encontramos incrustados na arquitectura popular das casas fornos de lenha orientados especificamente para o efeito.

Não é à toa que o leitão encontra aqui expressão e ciência únicas no território nacional. O leitão assado à moda da Bairrada é a melhor forma de o preparar e servir. Eu pelo menos não conheço outra melhor e tenho-me esforçado bastante. Mas já experimentou iscas extraídas dos fígados dos requinhos? Maravilhosas!

Das muitas e repetidas incursões ao longo de anos, aconselho as que se fazem no Mugasa, em Fogueira, Anadia (234 741 061), ou no Vidal, em Aguada de Cima (234 666 353). Dois grandes lugares, já agora, para se abastecer de leitão à Bairrada.

Concentre-se nas iscas e exija que lhe sirvam Pai Abel Bairrada branco 2021 da Quinta das Bágeiras (37 euros). Encontro aguerrido entre vinho e iguaria, mas o mix Bical e Maria Gomes tem o toque abençoado da mão sacrossanta de Mário Sérgio Nuno, agora secundado pelo filho Frederico.

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O vinho para harmonizar.
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Iscas de leitão do restaurante Mugasa. Pedro Granadeiro / Global Imagens

Ao negalho ninguém se nega

Não é para estômagos frágeis de meninos da cidade nem para comer todos os dias. Bebe um pouco da tradição da chanfana mas vai bem mais além, no prazer que dá e no quanto vicia. Fundamental é o prato ser exemplarmente confecionado e só recomendo duas casas. O Retiro, em Ancas, Anadia (231 528 070), cozinha sem mácula tudo executado como outrora, nunca se come apenas uma dose, garanto; e o Rei dos Leitões, na Mealhada (968 123 084), que desenvolveu uma versão gloriosa e moderna dos tradicionais negalhos que me agradou muito. Diga-se que aqui se faz também um dos melhores leitões à Bairrada.

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A versão do negalho do Rei dos Leitões. DR
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O vinho para acompanhar: Caves São Domingos Lopo de Freitas Viognier branco 2020

O que são então os negalhos da Bairrada? Simples. Retalhos geométricos de bucho de cabra recheados de hortelã, chouriço, pimentão doce, banha, louro, cebola, alho, tripas de porco e cabra que são atados e levados a estufar longamente em vinho tinto.

Corre que o prato foi criado pela falta de comida por força das invasões francesas, mas para mim foi exactamente por pratos como este que nos vimos livres dos invasores. É muito difícil de harmonizar com vinho, mas o possante e notável Caves São Domingos Lopo de Freitas Viognier branco 2020 (32 euros) dá bem conta do recado. Trabalho genial da enóloga Susana Pinho.

Olha o pitéu que nunca dá raia

Foi por estas latitudes e carências já referidas que os bravos portugueses desenvolveram as artes da pesca e respetivos receituários, inscritos nos canhanhos da cozinha de pescador que ainda ninguém reduziu a escrito.

Eu sou um romântico incurável e sempre que me debruço sobre este prato ouço pescadores a falar ao longe um com o outro, e um deles a gabar-se de que o cozinhado que acaba de preparar com os fígados de raia está um grande pitéu. Nasce, na minha convicção a corruptela que vai dar origem à raia de pitau que é de facto a forma mais extraordinária de processar a raia, à maneira de caldeirada mono-proteína.

A raia tem de ser fresquíssima para que o fígado resulte copioso e ao mesmo tempo elegante e é cada vez mais difícil de encontrar restaurantes que a saibam fazer bem. E para os encontrarmos vamos até à Praia de Mira, o reduto marítimo mais bairradino de todos.

Nuns restaurantes chamam-lhe pitéu de raia, noutros raia com molho de pitau, noutros ainda raia de pitau, mas já sabemos que se trata sempre do prato de que falamos.

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Nuns restaurantes chamam-lhe pitéu de raia, noutros raia com molho de pitau, noutros ainda raia de pitau.
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Giz Bairrada branco harmoniza bem.

Faz-se no Mar Azul (916 537 700) e no Lila (231 471 124), ambos na Praia de Mira, e a harmonização do prato com vinho branco é feliz com o Giz Bairrada branco 2022 (26 euros). Labor aturado e intenso de Luís Gomes a partir de uma vinha centenária rica em calcário que confere ao vinho um grupo de amargos e tonalidades salinas inesquecíveis pela eficácia no encontro com o prato.

Fonte e crédito das imagens: Diário de Notícias / Portugal