“Temos bacalhau, grão, couves, doces de Natal e presentes. Aqui no quartel não falta nada nesta noite”, conta Leandro Portelinha, 25 anos, um dos bombeiros voluntários de Campo de Ourique, Lisboa, que esteve de serviço na noite da Consoada.
Apesar de ser a sua primeira noite de Natal em serviço – é bombeiro há quatro anos – não estranha. Vem de uma família que já vai na quarta geração de Soldados da Paz e viu, durante muitos natais, o pai a ir para o quartel, nesta altura do ano.
“O meu bisavô pertenceu à direção dos bombeiros aqui de Campo de Ourique; o meu avô foi 2.º comandante e o meu pai, neste momento, é chefe”, revela o bombeiro de 3.ª categoria, no início de carreira.
“O meu pai estava quase sempre de serviço no Natal e este ano também vai cá estar. Aliás, até é o meu pai que costuma preparar a ceia de Natal. Além de ser chefe dos bombeiros também faz de chefe de cozinha”, brinca o jovem, que tem uma filha de 2 anos, Caetana.
Aliás, estar longe da família é o mais complicado, nesta data. “É sempre um tema de conversa, porque a minha mulher, que é auxiliar de infância, não entende bem esta situação de jurarmos a vida por vida, a vida do outro sempre à frente da nossa, e sairmos de casa para o quartel, sobretudo nestas datas. A minha filha já é apaixonada pelos bombeiros, está sempre a imitar o barulho das ambulâncias, mas a mãe não gosta muito.”
Filho, neto e bisneto de bombeiros, Leandro recorda a infância, quando era ele a estar no lugar da filha. “O meu pai ia para o quartel e faltava sempre aquela presença, à mesa. Mas quando somos pequeninos, com muitos presentes à volta, não ligamos tanto. É pior quando começamos a ficar mais crescidos, ali pela altura da adolescência. Só nessa ocasião é que se começa a sentir-se mais a falta do pai nesta noite.”
Leandro Portelinha está na linha da frente para atender as chamadas reencaminhadas via 112, de emergência médica. Apesar de esta ser a primeira Consoada em serviço já sabe o que o espera. “Pelo que os meus camaradas mais velhos dizem, a noite de Natal é especial. Nesta altura os hospitais já não estão cheios e já não há azáfama no trânsito”.
“As pessoas só ligam para o 112 mesmo quando é preciso. Há muitos casos de AVC, enfarte agudo do miocárdio e acidentes de viação.” O facto de trabalhar com casos de emergência médica torna-se “particularmente tocante nesta quadra”.
“Nos outros dias não apanhamos, sequencialmente, AVC e acidentes. É triste ver esses casos a acontecer e toca-nos mais, emocionalmente, por ser a época natalícia”.
O bombeiro relata, ainda, que há situações de idosos solitários que recorrem aos bombeiros nesta noite especial. “Há muitos idosos que estão sozinhos, não conseguem ter cuidados de higiene e alimentação, e acabam por chamar os bombeiros e irem para o hospital onde, pelo menos, têm a companhia de outros doentes.”
Mas o que mais toca o coração de Leandro Portelinha são as pessoas em situação de sem-abrigo. E recorda um caso que aconteceu há poucos dias, já com a cidade de Lisboa toda enfeitada e as luzes de Natal a piscar.
“Houve um senhor, no Cais do Sodré, que estava completamente desorientado. Não falava, não reagia, estava todo urinado”, descreve. “Entretanto, começámos a falar com ele, arranjámos-lhe um cigarro, e ele começou a tratar-me pelo meu nome. Abraçou-se a mim, a chorar, e contou-me o que lhe aconteceu. Disse-me que já tinha tido um café, mas teve uma zanga familiar”.
“A mulher e a irmã juntaram-se contra ele e tiraram-lhe tudo. O mais comovente foi ele dizer-me que nem sequer sabe onde, nem como, é que vai passar a noite de Natal, porque já teve tudo – até uma boa casa – e agora não tem nada.”
Desastres de carro: o dramático clássico de Natal
Os acidentes de viação são, talvez, o mais triste clássico da quadra natalícia. “Acontecem muitos desastres de carro no Natal, mas também na Passagem de Ano, no Carnaval e nos Santos Populares. As pessoas têm tendência a beber álcool em demasia e, por vezes, as coisas não correm bem.” Por isso, o bombeiro avisa que a palavra de ordem, a reter nesta noite de Consoada, é “prevenção”.
“Nesta época temos de estar com olhos redobrados em tudo. Não sabemos quem é que está no carro ao lado, nem os problemas que tem. Até há pessoas que não estão alcoolizadas, mas têm problemas de stress, alguma angústia familiar ou profissional e, mesmo assim, têm de conduzir, sem cabeça para isso, porque têm de se deslocar. Ora, isso pode potenciar um acidente. Por isso, a receita para este Natal, não me canso de repetir, é a prevenção.”
Caso não haja qualquer ocorrência, Leandro Portelinha terá a companhia do pai, e dos outros camaradas, à mesa de Consoada, no quartel. “Ter cá o meu pai acaba por ser um conforto, porque olho e vejo uma figura familiar. Apesar de no quartel sermos todos amigos, sermos como uma família, o meu pai traz-me memórias e o quente da “casa”.” Além da ceia haverá troca de presentes e muitos doces natalícios, alguns “deixados por populares e também pelas juntas de freguesia aqui da zona”. À meia-noite “caso não haja nenhuma ocorrência vamos estar aqui todos juntos, no quartel, com as nossas ambulâncias”. Ao todo serão 12 os bombeiros de serviço no quartel da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique, Lisboa, nesta noite.
“A noite mais calma do ano”
Noutra ponta da cidade, mais concretamente na Praça do Chile, estará José António Mendes, 51 anos, motorista de autocarros da Carris. Nesta noite, José António Mendes irá pegar ao serviço, como em tantas outras, às seis da tarde e só largará o turno quando já for uma e meia da madrugada. Sempre ao volante do 717, o autocarro que faz o percurso entre a Praça do Chile e Fetais, já no Concelho de Loures.
“Sinceramente, como motorista, é a noite mais sossegada e calma do ano”, avança José António Mendes. “É uma noite em que se trabalha muito bem porque não existe trânsito, há poucos passageiros e dá para cumprir os horários à vontade”.
Pelo caminho, vai apanhando “sobretudo pessoas que ainda estão a sair dos seus trabalhos e se dirigem para suas casas ou para casa de familiares. Mais tarde, ao final da noite, os passageiros são, sobretudo, pessoas que estiveram a fazer a Consoada em casa da família e regressam a casa”.
E se agora está numa carreira mais periférica, José António já conduziu autocarros que passavam pelo centro da cidade. Nesses casos, revela que, na noite de Natal, também entram nos autocarros “muitos turistas, deslumbrados com as luzes da cidade, e que aproveitam para tirar fotografias, porque a cidade está vazia!”
O motorista da Carris tem um filho pequeno, com 10 anos. “O meu filho ressente-se mais. No entanto, ele já está habituado porque eu, quase todos os anos, trabalho na noite de Natal. Ele sabe que o pai por volta das duas da manhã chega a casa e, agora, ainda está acordado. Quando era mais pequenino era diferente; ele adormecia e acabava por só conseguir abrir os presentes na manhã do dia seguinte”.
José António Mendes é motorista de autocarros da Carris há 23 anos. Antes foi segurança e também trabalhava na Consoada. “Já se tornou um hábito”.
Aliás, garante que prefere trabalhar no Natal do que na Passagem do Ano. “A noite de Ano Novo não é fácil. Há muita confusão, os autocarros andam cheios, há má educação dos passageiros que, nessa noite, também bebem mais. Tanto na Passagem do Ano como nos Santos Populares é muito mau trabalhar nisto.”
Na Consoada, como é mais fácil cumprir os horários, o motorista explica que chega mais depressa aos terminais e consegue fazer telefonemas de Boas Festas. “Dá para ligar para a família e para os amigos a desejar um Feliz Natal e sinto que as pessoas ficam satisfeitas com isso.”
Ao volante, não tem Consoada. Mas, quando vai entregar o autocarro à Estação da Musgueira, acaba por conviver com os colegas e não faltam, por ali, doces de Natal “e outros miminhos, como bolos e qualquer coisinha para beber. Quando deixo o autocarro convivo um bocadinho com eles e depois vou para casa, que fica a cinco minutos da estação. Nesse aspeto sou um privilegiado, porque chego a casa num instantinho, depois desta noite de trabalho”.
Apesar de ser noite de Natal, o motorista da Carris não nota maior simpatia por parte dos passageiros. “As pessoas entram no autocarro e, no máximo, dizem “boa noite” e desejam Bom Natal.” O dia seguinte, 25, é normalmente de folga.
“O almoço de Natal acaba também por servir para colmatar aquela falta do jantar da Consoada. É nessa altura que me reúno com a família”, explica o homem que tem, ainda, um filho com 20 anos e que, nessa altura, se junta à mesa. “Ele já não vive comigo, já tem a sua vida.”
As horas vão passando e, enquanto em casa a maioria das pessoas janta em família, José António Mendes conduz o autocarro. Satisfeito. “Não troco trabalhar na noite de Natal por outras ocasiões. É, realmente, uma noite em que se trabalha muito descansado.”
E acaba, até, por relaxar do dia a dia mais confuso, na cidade de Lisboa. “Quando entrei para a Carris, há 23 anos, ouvia os meus colegas mais velhos a queixarem-se, enervados com a situação. Passados estes anos até os entendo, porque esta vida não é fácil: temos de lidar com os passageiros e com o stress do trânsito.”
Novos meios de mobilidade urbana também vieram atrapalhar a vida dos motoristas de autocarros. “Hoje em dia, com as trotinetas, os tuk-tuks e TVDE é cada vez mais complicado trabalharmos na cidade de Lisboa.”
O autocarro que conduz vem preparado com uma cabina fechada, que o deixa à parte dos passageiros, por motivos de segurança. E se antes apenas se viam autocarros cabinados nas carreiras que passavam por zonas mais problemáticas da cidade, hoje em dia as novas viaturas, que vão sendo adquiridas pela empresa, já vêm todas assim equipadas.
“Atualmente sentimo-nos muito mais seguros com estes carros cabinados. Isto está perigoso, apesar de ainda não se sentir aquela pressão de que ouvimos falar noutros países da Europa. No meu caso, já tive alguns bate-bocas, mas nunca fui agredido por passageiros.” E conta que a carreira que conduz, a 717, “não é uma carreira fácil porque passa por muitos bairros sociais e é preciso um certo cuidado”. Porém, já viveu tempos piores.
“Antes fazia os bairros de Chelas, nas carreiras, 755, 794, e aí era mais complicado. Então nas Passagens de Ano era terrível. Os autocarros enchiam, as pessoas vinham alteradas, tocavam em todas as paragens e não paravam de fazer barulho e causar perturbações.” De resto, já conduziu o autocarro 720, entre o Alto de Santo Amaro e a Picheleira, e a 742, que liga o Polo Universitário da Ajuda ao Bairro Madre de Deus, na zona oriental da cidade.
Certo é que 23 anos depois de ter conseguido emprego como motorista de autocarros da Carris, após ter respondido a um anúncio de jornal e ter passado por várias etapas de recrutamento, José António Mendes é um homem feliz com o seu trabalho.
“A Carris é uma empresa muito conceituada. Quando entrei, os bancos até facilitavam nas questões do crédito habitação, por ser uma empresa muito sólida. Gosto muito do que faço e tive uma grande sorte!”.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
Crédito das imagens: Paulo Spranger / Global Imagens