São Pedro distribui a chuva ao calhas, como um louco, sem critério. É ao deus-dará. No Norte e no Centro do país, onde as chuvas de finais de outubro e princípios de novembro tinham chegado para encher seis albufeiras, voltou a chover a cântaros em dezembro.
As barragens da Serra Serrada e de Vilar-Tabuaço, no Douro, a da Lagoa Comprida, no Mondego, as de Belver, Capinha e Cova de Viriato, no Tejo, todas já fartas de água e saciadas, abriram comportas para deixarem correr o excesso – enquanto no Algarve a chuva a conta-gotas nem deu para molhar as seis barragens da região, que continuam de língua de fora a arfar de sede.
As barragens algarvias — Bravura, Odelouca, Arade e Funcho, no Barlavento; Odeleite e Beliche, no Sotavento — estão a menos de um quarto da capacidade da capacidade, segundo os relatórios da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
Não terão, por junto, mais do que 34 hectómetros cúbicos de água, o equivalente a 34 mil milhões de litros. Até parece um mar imenso e inesgotável. Mas é uma poça — uma pequena poça para as necessidades das torneiras. “Dá para abastecer a rede pública durante uns oito meses”, diz ao Diário de Notícias (DN) o professor Nuno Loureiro, investigador da Universidade de Faro.
O Concelho de Silves, com três mil hectares de regadio, dá terra à maior parte dos laranjais algarvios. Daqui saem anualmente cerca de 150 mil toneladas de laranjas, metade de toda a produção do Algarve — e o Algarve, segundo o Instituto Nacional de Estatística, contribui com quase 90 por cento do total das 350 mil toneladas de todo o país. Os pomares precisam de sol e não passam sem beber. Calor não lhes falta, mas a água é cada vez mais escassa.
João Garcia, presidente da associação de regantes, olha para os pomares verdejantes com medo do que pode estar para vir. Não é preciso ser bruxo para adivinhar a desgraça da seca. O céu limpinho de nuvens e o sol sorridente não prenunciam nada de bom. Já foi tempo em que chovia mais no Barlavento algarvio, de Sagres a Albufeira, e menos no Sotavento, de Loulé a Vila Real de Santo António.
Agora, é ao contrário. Nos finais de novembro, caíram abençoadas bátegas a Sotavento e pingas envergonhadas a Barlavento. As barragens de Odelouca e do Arade, donde vem a água que rega os pomares de Silves e de Lagoa, continuaram em baixo — de tal maneira vazias que a Agência Portuguesa do Ambiente decidiu suspender a rega. Dali não sai uma gota para a agricultura. A prioridade é acautelar o abastecimento público.
Cada hectare de laranjal, o equivalente a um campo de futebol, pede entre seis mil e 6500 metros cúbicos de água por ano — seis ou 6,5 milhões de litros, de janeiro a dezembro. A rega tem sido tão parcimoniosa que, este ano, a produção de laranjas das variedades da primavera e do verão — Lane Late, Valência e Dom João — caiu para metade.
“Há pomares que já perderam muitas laranjeiras. As árvores secaram e morreram. Outros, alimentados por furos, estão em regime de sobrevivência: recebem apenas a água necessária para que as árvores não morram, embora pouco ou nada produzam, na esperança de que chova e possam ser recuperadas”, diz João Garcia.
Os regantes de Silves ainda conseguiram regar até finais de novembro. No vizinho Concelho de Lagos, na zona de Odiáxere, a água é uma memória antiga. Há três anos que os beneficiários da Barragem da Bravura — uns 1800 hectares de regadio — não têm uma gota de água a correr nos canais de rega.
A albufeira da barragem parece o fundo de um alguidar e as suas margens são hoje autênticas ravinas áridas e pedregosas. A água acomodada lá em baixo, tão pouca que só pode ser retirada com uma bomba de sucção, está destinada à rede pública.
As chuvadas de outubro, resultado das depressões Aline e Bernard, até foram animadoras. Bateram forte. Mas passaram depressa. Partiram tão depressa como chegaram. Não deixaram mais do que 100 mil metros cúbicos (100 milhões de litros) de água na barragem da Bravura.
“Deu para duas semanas de abastecimento público”, diz o presidente da associação de regantes, António Marreiros. Nem uma pinga desta água foi para rega. Os pomares de laranjas têm sobrevivido à sede graças a dois furos, abertos na zona de Torre, emprestados pela Câmara de Portimão.
A paisagem ao redor dos canais de rega da Bravura está a mudar. Os tradicionais laranjais estão a ser velozmente substituídos por uma nova cultura permanente – abacates. As plantações, regadas a partir de furos até aos aquíferos subterrâneos, estendem-se de Odiáxere ao Concelho de Vila do Bispo. São árvores odiadas pelos ambientalistas. Apontam-lhes um pecado mortal: bebem muita água — a água que o Algarve não tem. É mais a fama que o proveito.
Macário Correia, que o país conheceu como um empenhado secretário de Estado do Ambiente, é agrónomo de formação e agricultor. Os abacateiros não lhe tiram o sono. “Não é verdade que consomem as carradas de água que dizem”, garante. Bebem, quanto muito, “mais 10 por cento que um pomar de citrinos”, entre 6,6 milhões e sete milhões de litros anuais por hectare.
Mais gota, menos gota. A tendência é que bebam cada vez menos água. A Universidade do Algarve, em colaboração com a Direção Regional de Agricultura, está a levar por diante um estudo para promover a rega mais eficiente dos pomares de culturas de regadio.
Mas os beberolas dos abacateiros têm uma vantagem: dão mais rendimento aos agricultores. O mercado, segundo Macário Correia, “está a pagar as laranjas aos produtores a uma média de 20 cêntimos o quilo e os abacates a cerca de dois euros”. Ele dedica-se aos citrinos — laranjas, tangerinas e limões — e à alfarroba.
Das suas terras de família, nos arrabaldes de Tavira, não sai um único abacate. Mas os terrenos com esta fruta estão a crescer no Algarve. Estendem-se por 2600 hectares, números da Direção Regional de Agricultura, e já representam oito por cento de toda a área agrícola da região. O negócio parece compensador. Um estudo encomendado pela União Empresarial do Algarve demonstra que as atuais plantações de abacateiros, quando atingirem o esplendor da produção, vão gerar 40 milhões de euros para a região.
O Produto Interno Bruto do Algarve, de acordo com os dados da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, anda à volta dos 10 mil milhões de euros. O maior contributo vem do turismo.
A agricultura vale cerca de nove por cento da riqueza: cerca de 900 milhões de euros. Ocupa cerca de 32 500 hectares, boa parte com citrinos, maçãs, peras, abacates — pomares que reclamam água. As barragens estão esgotadas. Até os regadios do Sotavento, oito mil hectares servidos pelas barragens de Odeleite e de Beliche, ficaram sem pinga no início de dezembro. “Não há água para iniciarmos a campanha do próximo ano”, lamenta Macário Correia, presidente da associação de regantes.
Os agricultores, à falta de águas superficiais, recorrem à água do subsolo. Estão licenciadas 6765 tomadas de água por todo o Algarve, entre furos, poços e noras, segundo o Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos. Mas ninguém sabe quantos são os furos ilegais. José Paulo Monteiro, hidrólogo, professor do Centro de Ciências e Tecnologias da Água da Universidade de Faro, calcula que “existem no Algarve, região com uma área de 5400Km2, entre 20 mil e 25 mil furos”.
Nuno Loureiro, investigador da Universidade de Faro, exige “planeamento e fiscalização” para impedir que “cada um faça o que quer com um bem escasso que é de todos”. Não será difícil fiscalizar e pôr ordem nos furos. As imagens de satélite, que tudo observam, podem dar uma ajuda.
Nuno Loureiro conhece, como poucos, o Algarve visto do espaço. Trabalha na construção de um mapa moderno que deverá estar finalizado no próximo mês de fevereiro. Veremos, então, até ao ínfimo milímetro qual é a verdadeira extensão do regadio no Algarve. Os satélites têm-lhe mostrado “um acréscimo” das áreas regadas ao longo dos tempos:
“As imagens da década de 80 do século passado mostram como é pequena a mancha dos citrinos na zona de Silves e como é modesta toda a zona a norte e a sul da Estrada Nacional 125, entre Tavira e Vila Real de Santo António. Se formos buscar imagens recentes, dos anos de 2018, 2020, 2022, vê-se que cada vez cresce mais e cada vez se rega mais.” O verde não engana. Pode ver-se se uma vegetação está a ser regada — e essa informação, cruzada com as possíveis fontes de água, chega para detetar os furos ilegais.
Este método da cartografia por satélite, segundo Nuno Loureiro, “permite fiscalizar a utilização da água, mas não está a ser utilizado pelos decisores políticos e técnicos, e tem de começar a ser”. Mesmo que este inverno seja um bocadinho mais generoso com a chuva, isso “pode atenuar a dor, mas não é remédio” para o problema que a região enfrenta – e o problema, resume o cientista, é bicudo: “O Algarve consome mais água do que aquela que tem disponível.”
Por debaixo dos nossos pés, sob as barragens exauridas e os canais de rega secos, correm rios e riachos que formam consideráveis massas de água armazenadas entre as rochas. O Algarve tem 17 aquíferos no subsolo — “são verdadeiras [barragens do] Alqueva”, diz ao DN o hidrólogo José Paulo Monteiro. Mas estas reservas estratégicas “estão a ficar em estado crítico”, porque a seca e a falta de precipitação está a impedir que sejam recarregados. O mais importante — delimitado por Querença, no Concelho de Loulé, Faro e Silves — já conheceu uma “capacidade de recarga da ordem dos três milhões de metros cúbicos por ano”.
Foi tempo. O nível de água está a descer tanto que a água salgada do mar já começou a infiltrar-se. Os outros não estão melhores. Salva-se o que está localizado nas profundezas da terra entre Almádena e Odiáxere. A natureza aprisionou-o entre rochas e cortou-lhe o caminho para a costa.
O Algarve consome uma média de 237 hectómetros cúbicos de água por ano, o equivalente a 237 mil milhões de litros. Mais de metade, quase 129 hectómetros, vem dos aquíferos — água que serve para tudo: abastecimento público, regra dos pomares e dos campos de golfe, enchimento de piscinas… “Estas reservas estão a ficar no vermelho”, alerta o professor Nuno Loureiro.
A Agência Portuguesa do Ambiente, devido à seca, não autoriza novas captações nos aquíferos que se encontram em situação crítica. A lei estabelece critérios para o licenciamento de um furo. Um deles é fixar uma quantidade máxima de água que pode ser extraída.
“No caso da rega, por exemplo, o volume tem a ver com a área do pomar ou com a área do campo de golfe”, diz José Paulo Monteiro. Mas isso é tudo muito bonito no papel. “Não há maneira de controlar o que cada um tira”, garante. Há, ainda, outro problema que dificulta o controlo da captação das águas dos aquíferos. “Em Portugal, as águas subterrâneas são privadas. O dono do terreno é o dono das águas”, diz o investigador da Universidade do Algarve.
A propriedade da água do subsolo, se é publica ou privada, preocupa António Pina, presidente da Câmara de Olhão e da Comunidade Intermunicipal do Algarve. “A água é de todos. Não faz sentido que seja uma coisa privada. O regime legal tem de ser clarificado. Perante as dificuldades que vamos enfrentar, com o agravamento da escassez, a lei tem de ser alterada com urgência para salvaguardar um bem que pertence a todos.”
Os regulamentos obrigam a que os grandes consumidores de água subterrânea tenham contadores nos seus furos. “A maior parte não tem e não creio que haja fiscalização”, diz António Pina. O preço da água tirada dos aquíferos é “irrisório”, segundo uma fonte da Agência Portuguesa do Ambiente que prefere não ser identificada.
A taxa é fixada com a emissão da licença do furo e em função do volume de água autorizada. No caso do golfe, por exemplo, o preço para um campo de 18 buracos não vai além dos 1500 euros por ano.
O turismo, a locomotiva da economia do Algarve, pretende reutilizar as águas residuais para regar golfes e jardins. Mas o que está a ser feito, segundo António Pina, é pouco mais do que uma “gota do volume de efluentes tratados que poderia ser reaproveitado”.
O presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, José Apolinário, confia na capacidade dos grupos hoteleiros de “acelerarem o processo” de aproveitamento das águas das estações de tratamento: o “objetivo é chegar ao final deste ano com, pelo menos, 16 por cento dos efluentes reutilizados”, diz ao Diário de Notícias.
O Plano de Resiliência e Recuperação (PRR), a célebre bazuca europeia, tem 240 milhões de euros para investimento em obras que permitam ao Algarve enfrentar a escassez de água. Os planos, para o professor Nuno Loureiro, pecam por tardios.
O Algarve não vive uma situação de seca. É muito pior do que isso. O investigador, de tanto olhar para os registos da pluviosidade, já conhece de cor a quantidade de chuva caída na região nos últimos 20 anos: “A seca é um episódio conjuntural, com um princípio e um fim que se pode facilmente delimitar no tempo, em que há um decréscimo de precipitação a que se segue uma subida da precipitação. O que nós temos é uma curva que está a decrescer e nunca mais reverte.”
A curva, sempre a descer, indica um caminho assustador. “Observamos quebras na pluviosidade e nas reservas de água há já duas décadas e, mais do que episódios pontuais de seca, o Algarve encadeia anos de fracas pluviosidades e já está em desertificação”, diz o professor Nuno Loureiro.
O plano de investimentos para que a água não falte nas torneiras prevê a melhoria da rede de abastecimento urbano — para evitar a perda de mil milhões de litros ano –, a modernização da rega agrícola, a utilização de tecnologia para fiscalizar os furos, a reutilização de água residual tratada, a construção de uma central dessalinizadora e a captação de água no Guadiana, na zona do Pomarão, e canalizá-la para a Barragem de Odeleite através de 75 quilómetros de canais a céu aberto.
Tudo isto, segundo Nuno Loureiro, já devia estar concluído há pelo menos 10 anos. A central de dessalinização, que será construída em Albufeira, ainda não saiu do papel. O transvase entre o Pomarão e Odeleite também continua, como manda a lei, em discussão pública. Macário Correia junta ao plano a construção de mais duas barragens – a da Foupana e a de Alportel, ambas no Sotavento. “É preciso reter a maior quantidade de água possível e evitar que ela desapareça no mar”, diz.
Nuno Loureiro só tem a certeza de uma coisa: o Algarve está em desertificação – e “não vejo planos a longo prazo, uma solução pensada para se saber onde vamos buscar água daqui a 20 anos”. Anda tudo devagar. A construção de uma única central dessalinizadora, tal como está previsto, é pouco: “São precisas duas ou três.”
Se a dessalinização for como a história do aeroporto, o Algarve morre de sede. A não ser que São Pedro mande chuva a cântaros que encha barragens e recarregue aquíferos. Caso contrário, será preciso ir às reservas subterrâneas, as “Alquevas debaixo dos nossos pés”, para que a água não falte nas torneiras.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
Crédito da imagem: Carlos Vidigal Jr. / Global Imagens