Quando, em fevereiro de 1493, um Cristóvão Colombo perdido da sua frota, e presumivelmente exausto, chegou à baía dos Anjos, estava longe de imaginar que muitos anos depois muitos habitantes dessas “Índias Orientais” – que acabara de descobrir – viajariam para estas paragens.
É ao lado da ermida onde o navegador celebrou a sua primeira missa em território europeu, depois de descobrir a América, que se celebra anualmente o Santa Maria Blues, o mais antigo festival português dedicado ao estilo, que só a insularidade justifica não ser ainda mais conhecido.
Mariense “de gema”, António Monteiro, ou Ti Bragueta, como é conhecido na freguesia (a que também preside), celebra este ano uma década na liderança do mais antigo festival português dedicado ao estilo.
À conversa no restaurante Bar do Blues vai contando como nesta costa bela e rica em peixe, mas também muito devastada por piratas entre os séculos XV e XVIII, nasceu a associação que promove o encontro com o estilo musical norte-americano, nesta “que é a única ilha dos Açores assente na placa africana”, explica.
É a ilha açoriana mais próxima da costa africana e foi muito assolada pela pirataria. Piratas famosos como Bei, que se julga ter sido argelino e ficou no imaginário dos ilhéus, que ainda hoje usam a expressão “Bei credo” como sinónimo de perigo.
Corsários que viam presa fácil nos mantimentos da ilha e chegavam a sequestrar muitos dos habitantes para trabalhar nas tinturarias no Norte de África. Os que conseguiam regressar a Santa Maria, através do pagamento de resgate, eram apelidados de “escravos das cadeinhas” e daí nasceu o nome da associação que dinamiza a baía dos Anjos.
Coincidência feliz que nesta terra de escravos libertados se celebrem agora melodias nascidas de ritmos de outros feitos cativos na América.
O mar sempre foi elemento preponderante na cultura de Santa Maria. Provavelmente por isso, a ausência de ligações marítimas entre com o resto do arquipélago gere tanta revolta nas gentes da ilha. Como nos explica Bárbara Chaves, presidente da Câmara Municipal de Vila do Porto, município único na ilha que reúne cinco freguesias e pouco mais de cinco mil habitantes.
A autarca, que falava à margem de um encontro das Casas Açorianas sobre o incremento e sustentabilidade do turismo nos Açores, lamentava a ausência de ligações marítimas, que desapareceram com o fim da pandemia, em 2020, e que “tinha o benefício claro de unir Santa Maria às outras ilhas via marítima “.
Sendo verdade que os açorianos beneficiam da tarifa Açores, desconto válido nas passagens aéreas, porém tal não acontece para quem visita o arquipélago. Esta situação complica as exportações de bens produzidos em Santa Maria, mas sobretudo, destaca a autarca, “as famílias de Santa Maria não poderão ir a São Miguel e, comodamente, levar o seu carro, estamos numa situação de dupla insularidade”.
Apesar disso, cada vez mais gente escolhe visitar esta ilha, de acordo com o Serviço Regional de Estatística dos Açores (SREA). Em 2023, só no alojamento local, a ilha que registou maior variação homóloga positiva nas dormidas foi Santa Maria (13,0%) e são cada vez mais os que escolhem viver ou regressar aqui, como Tânia Bairos, que, com mais três artesãs, Márcia Santos, Leonor Pimentel e Sofia Moreira, criou, no antigo espaço do Armazém Lisboa, o Só Atelier.
Em maio o “Só´´” – escreve-se assim mesmo, com três acentos – completa um ano de atividade no centro de Vila do Porto. O nome do projeto deriva de uma interjeição mariense e que significa “nem pensar nisso” ou algo impossível.
Uma ironia para o projeto, que, como nos explica Tânia, pretende “recuperar produtos endógenos” e promover a criação artística, quer seja através de workshops ou de exposições mensais de artistas com ligação à ilha.
Um espaço de criação artística em torno dos materiais daqui, que pode ser visitado e pretende fixar algumas das heranças culturais de quem por cá foi passando. Tânia tem a seu cargo a olaria e tenta recuperar alguma da tradição de produção de objetos em barro que outrora foi muito popular em Santa Maria.
A ilha possui barro em abundância na freguesia de Almagreira e as marcas desta tradição ainda hoje são visíveis nas janelas da freguesia pintadas com a cor ocre. Não muito longe do ateliê, um pouco mais abaixo em direção do porto, um outro caso de paixão deu frutos saborosos.
Ao entrarmos no Restaurante A Travessa, só o ligeiro sotaque de Marc Olivier o denuncia. O alemão, natural de Munique e casado com uma mariense, está atarefado com os muitos ilhéus que ali provam a única cerveja artesanal de Santa Maria: A Nossa.
Mais tarde junto ao seu projeto “pessoal” vai contando como ainda experimentaram viver na capital da Baviera durante uns anos, até um filho os ter feito decidir rumar até meio do Atlântico.
O antigo taxista explica que “quando circulava por Munique costumava ficar enjoado com o cheiro das cinco fábricas cervejeiras a trabalhar na cidade, mas aqui, ao fim de uns anos, comecei a sentir saudades desse odor”.
Após uma década na ilha no negócio da restauração, despertou ali uma vocação esquecida e começou a “brincar” com maltes, lúpulos e leveduras num pequeno espaço da Incubadora, do Centro de Desenvolvimento e Inovação Empresarial de Santa Maria.
Sempre a experimentar novos sabores, foi por desafio de um responsável da cooperativa Agromariense que fez uma cerveja artesanal recorrendo à característica meloa de Santa Maria, produto maior da ilha.
Mariense por afinidade e cervejeiro por saudade, “a levedura faz o cervejeiro”, diz a sorrir, e promete continuar a procurar nesta ilha por outros sabores.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
Crédito das imagens: Reinaldo Rodrigues / Global Imagens