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À espera de Samuel Beckett

É interessante tentar imaginar Samuel Beckett a ver este filme biográfico sobre a sua pessoa. Interessante porque… não se imagina, pura e simplesmente, ou imagina-se a pior das reações. Concebido dentro do espartilho glamoroso de Hollywood, Dança Primeiro. Pensa Depois  parece comprazer-se na sua própria candura formal: agarra-se à superfície do título para fazer valer a graça de um argumento arrumadinho, mas bafejado por laivos “experimentais”.

Ora, a primeira impressão que daí advém é que Beckett, enquanto influente personalidade intelectual do século XX, foi alvo de um erro de perceção. Surge pintado por um dispositivo de cinema sintético que pouco ou nada condiz com o minimalismo do seu Teatro do Absurdo, ou sequer com a sua inteligência pessimista, que aqui assume um traço bastante confortável. Acima de tudo, este é um filme de James Marsh; para já, não deitemos fora o bebé com a água do banho.

Escrito por um argumentista de televisão escocês, Neil Forsyth, Dança Primeiro. Pensa Depois  monta o seu mecanismo de narração algures num espaço negativo da cerimónia do Prémio Nobel de 1969: vê-se Beckett a subir ao palco para receber a distinção, mas o desagrado com que o faz traduz-se noutro gesto radical, que será o golpe de fantasia do filme.

A saber, ele foge da cerimónia enveredando por umas escadas de bastidores que vão dar a um lugar cavernoso onde se depara com um alter ego idêntico, qual versão sábia de si mesmo. A partir desse encontro, a vida do dramaturgo irlandês vai sendo contada em flashbacks que têm origem nas pessoas que ele especula serem as merecedoras do valor monetário do prémio.

Começa-se pela sua infância e adolescência, moldadas por uma mãe fria, e passa-se para Paris, onde a sua experiência foi marcada pelo contacto com o escritor James Joyce, esse gigante compatriota, e, mais tarde, pela relação amorosa com Suzanne Dechevaux-Dumesnil, que também o envolveu na Resistência Francesa durante a invasão do Exército nazi.

No formato fílmico original, tudo isto surge num preto-e-branco liso (a cor chega nas cenas finais), que parece tão elegante quanto desalmado, como se o realizador de A Teoria de Tudo quisesse, à força, revestir de “charme de cinema” a figura por trás de À Espera de Godot. E sendo um biopic, em particular, com o uso do preto-e-branco e da imagem a cores, dialoga bem com o exemplo recente do Maestro, de Bradley Cooper.

Vejamos, se uma das críticas possíveis a esse maravilhoso filme é um certo desvio da imensidão do percurso musical de Leonard Bernstein em prol do romance de uma vida (que ainda assim capta o furor artístico de Bernstein), em Dança Primeiro. Pensa Depois, a obra de Beckett não é mais do que um efeito cosmético, uma ideia que adorna a biografia falsamente anticonvencional.

Algo que funciona, em certa medida, como uma atitude de defesa do realizador: ao evitar uma abordagem franca do universo da escrita de Beckett, Marsh consegue manter o filme numa zona intermédia e segura, em que ninguém se fere, nem se deslumbra. Passamos por Beckett como quem passa por um arzinho. E interpretações como as de Gabriel Byrne e Sandrine Bonnaire fazem apenas parte da mobília.

Fonte e crédito da imagem: Diário de Notícias / Portugal