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Sinéad O’Connor. O último verso de um longo hino à melancolia

O cabelo rapado, o aspeto frágil e uma voz poderosa, a gritar sofrimento, tornaram-na em grande ícone pop do arranque de década de 1990, enquanto ‘Nothing Compares 2U’ ia soando quase em loop pelo mundo fora, dominando os tops das diversas listas musicais e prémios da indústria.

Sinéad O”Connor, alma tormentosa irlandesa que encontrou na música alguns períodos de libertação, ficou para sempre colada ao êxito avassalador dessa versão da canção composta por Prince, mas nunca se libertaria dos fantasmas que acompanharam uma vida e uma carreira recheada de polémicas e episódios de fragilidade.

Despediu-se esta quarta-feira, aos 56 anos, em circunstâncias não esclarecidas, anunciou um comunicado enviado pela família à RTÉ, emissora nacional da Irlanda: “É com grande tristeza que anunciamos o falecimento de nossa amada Sinéad”.

Sinéad Marie Bernadette O”Connor nasceu em 8 de dezembro de 1966 no subúrbio de Glenageary, em Dublin. Com uma infância turbulenta, marcada pelos abusos físicos e morais em casa e pela vivência num reformatório, Sinéad formou uma natureza rebelde que encontrou na música a terapia possível e libertou uma irreverência criativa que a levaria ao estrelato mundial.

Foi num internato em Waterford, aos 16 anos, que um professor reconheceu o seu talento e a ajudou a produzir uma demo, recordava o obituário publicado pela BBC.

As suas composições atraíram o interesse do produtor e compositor Colm Farrelly e Sinéad abandonou a escola para integrar a banda Ton Ton Macoute. Mais tarde, mudou-se de Dublin para Londres, onde encontrou Fachtna Ó Ceallaigh, manager que tinha trabalhado com os U2.

A menina rebelde rejeitou sempre as tentativas das editoras para mudarem o seu visual punk e a tornarem “mais feminina”, desentendeu-se com o produtor que deveria idealizar o seu primeiro álbum e produziu ela própria, aos 20 anos, grávida, ‘The Lion and the Cobra’, que em 1987 rapidamente se tornou uma sensação de culto e introduziu a sua voz distinta ao grande público, valendo-lhe mesmo uma nomeação para o Grammy de melhor performance vocal de rock feminino.

Mas Sinead O”Connor será para sempre lembrada por ‘Nothing Compares 2 U’, composição de Prince que a irlandesa incluiu no seus segundo álbum, ‘I Do Not Want What I Haven’t Got’, transformando-a num hino melancólico para corações partidos.

Com um vídeo simples filmado no inverno num parque deserto nos arredores de Paris, deu roso, voz e alma a uma canção de emoção real e crua, encapsulando perfeitamente o amor e a perda. Sinéad confessava que chorou durante a gravação do vídeo e que achou difícil cantar a música porque a lembrava da perda da sua mãe, que morrera num acidente de carro em 1985.

Como recordou a AFP, O”Connor rapidamente desenvolveu uma personagem tão famosa quanto polémica, que causou um escândalo global quando, numa aparição no programa de televisão americano Saturday Night Live, em 1992, cantou as palavras “abuso infantil” antes de rasgar uma foto do Papa João Paulo II e declarar “Lute contra o verdadeiro inimigo!”

O abuso de crianças por padres católicos na Irlanda (e um por todo o mundo, como veio a ser destapado nos últimos anos) ainda não era amplamente conhecido e o gesto de O”Connor gerou críticas generalizadas.

A vida pessoal de Sinéad começou paulatinamente a chamar mais atenção do que a sua música, incluindo uma batalha judicial pela custódia da segunda filha, que a levou mesmo a tentar o suicídio, ou um episódio, em 1999, em que foi novamente o centro de um alvoroço, quando foi ordenada padre por um bispo dissidente numa cerimónia não reconhecida pela Igreja Católica tradicional, que não aceita mulheres como padres.

A sua saúde, mental e física, tornou-se o centro das preocupações de amigos e fãs. Diagnosticada com transtorno bipolar, Sinéad também lutava com uma fibromialgia. Em novembro de 2015, após se recuperar de uma histerectomia, publicou uma mensagem no Facebook a anunciar que estava num hotel irlandês e a pensar em suicídio, mas acabou por ser encontrada sã e salva e recebeu tratamento médico.

As tormentas não a largaram, contudo, com sucessivos episódios de saúde mental fragilizada e um novo trauma doloroso, em janeiro de 2022, quando o seu filho Shane, de 17 anos, se suicidou – O”Connor foi casada quatro vezes e teve quatro filhos, mais novo em 2006. Em 2018, converteu-se ao Islão e mudou seu nome para Shuhada” Sadaqat.

Por entre as lutas interiores que nunca a largaram, continuou a procurar algum escape na música, mas não voltou a experimentar o sucesso dos anos 1990. Ao todo, lançou lançou 10 álbuns a solo, desde The Lion and the Cobra até ao mais recente, de 2014, I”m not Bossy, I”m the Boss.

Mas, como então escreveu Bill Coleman, da Billboard , Sinéad ficará eternizada pela sua “interpretação brilhante de um lamento melancólico” em ‘Nothing Compares 2U’. Um lamento melancólico de que nunca se conseguiu libertar.

Fonte: Diário de Notícias / Portugal

Crédito da imagem: Twitter / Reprodução