Chama-se “vinculação dinâmica” e foi uma das grandes novidades no novo modelo de concurso de professores. Ao abrigo da referida vinculação, os docentes contratados com três ou mais anos de serviço podem deixar a precariedade, passando a ser quadro do Ministério da Educação (ME).
Contudo, são muitos os que recusaram a possibilidade de estabilidade, alguns já com mais de 20 anos de serviço. O que levou tantos docentes a não quererem passar a efetivos prende-se com a obrigatoriedade de concorrer, no próximo concurso de professores, a nível nacional. Uma imposição denominada pelos docentes como “presente envenenado”.
O DN questionou, várias vezes, o ME para saber quantos professores aceitaram a “colocação”, mas não obteve resposta.
Arlindo Ferreira, diretor do Agrupamento de Escolas Cego do Maio, Póvoa de Varzim, e autor do blogue “ArLindo” (um dos mais lidos no setor da Educação) não prevê sucesso na medida. No seu blogue, fez uma sondagem aos professores que reuniam os requisitos para a Vinculação Dinâmica e o resultado é esmagador.
Dos 1306 docentes, 878 docentes afirmaram que não iriam concorrer (67,2%) e apenas 428 docentes disseram que estavam dispostos a concorrer (32,8%).
“Fiquei um pouco surpreendido por uma percentagem tão elevada de docentes que afirmaram não concorrer à Vinculação Dinâmica (VD), pois estava a contar que o resultado fosse mais equilibrado entre as duas opções”, confessa.
Para o diretor escolar, “os professores percebem que o concurso da VD é um presente envenenado que os vai obrigar a aceitar qualquer colocação em 2024, não sabendo à partida onde poderão ficar”.
“Tanto mais que das 8223 vagas abertas este ano na VD, e que depois disso se extinguem, a sua maioria são na zona norte do país (4548 vagas nos QZP – Quadro de Zona Pedagógica – 1, 2 e 3) onde não é previsível que, em 2024, quando estes professores serão obrigados a concorrer a nível nacional, abram para estes candidatos”, explica.
Ou seja, quem vincular no próximo ano letivo no Porto, por exemplo, pode em 2024 ir vincular numa zona longínqua: “Os docentes que entrarem este ano na VD vão estar obrigados no próximo concurso interno a concorrer a todo o país para obtenção de vaga em lugar de quadro de escola, visto que a sua colocação este ano faz-se em lugar de QZP, que extingue”.
“Já este ano os docentes que ficarem colocados num determinado QZP fictício ficarão no próximo concurso de Mobilidade Interna atrás de todos os docentes que já são dos quadros e que também concorrerem à Mobilidade Interna. Logo, a probabilidade de acederem é quase nula”.
“Qualquer número abaixo das seis ou sete mil vagas preenchidas deve ter consequências”
Com mais de oito mil vagas abertas, Arlindo Ferreira defende que “qualquer número que fique abaixo das seis ou sete mil vagas preenchidas deve ter consequências para o Ministério da Educação e para o próprio Presidente da República”.
Isto porque, diz, “os professores pediram e avisaram para não ser promulgado este novo diploma de concursos”. “E caso isto aconteça, é devido um pedido de desculpas público a todos os que alertaram para esta situação. Também o farei se as vagas forem preenchidas, algo que não acredito que aconteça”, sustenta.
Um dos maiores receios de Arlindo Ferreira é que os concursos comecem a “ficar desertos”. “Se isso acontecer, vamos entrar definitivamente num processo de completa degradação do sistema de ensino público, como está a acontecer com os hospitais”, conclui.
Filhos são principal motivo de recusa
Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), vê na Vinculação Dinâmica “uma boa oportunidade para vincular”, mas não consegue antecipar se as vagas serão, de facto, ocupadas.
“Não quero avançar números, mas a expectativa era que, de facto, as vagas fossem preenchidas pelos contratados. A grande questão é essa. Serão todas preenchidas? Serão só algumas?”.
O presidente da ANDAEP relembra tratar-se de uma decisão pessoal e da realidade de cada docente. “Conheço pessoas que concorreram e outras que não o fizeram em virtude da condição pessoal, para não correrem o risco de ir para longe, principalmente por causa dos filhos. Quem tem filhos menores, tem receio de ficar longe de casa. Mas também há docentes com alguma idade que não querem correr o risco de ir parar a quilómetros de casa”, explica.
“Obrigar a concorrer a todo o país é violação de direitos”
A lecionar no Porto e com quase 20 anos de docência, Tânia Correia é uma das dezenas de professoras contactadas pelo DN que não concorreram para vincular. Para a docente, “obrigar as pessoas a concorrer a todo o país para vincular é uma violação de direitos”.
“O facto de pensar que posso ficar vinculada num QZP a centenas de quilómetros de casa, longe da minha família, sendo que o meu filho vai para o 2º ano e precisa de um acompanhamento, é impensável. Acresce ainda a questão financeira e o facto de não ter capacidade económica para sustentar duas casas e as respetivas contas”, avança. A possibilidade de ficar colocada na zona sul do país levou Tânia Correia a refutar a possibilidade de, finalmente, deixar de ser precária.
Vânia Gomes, Vila Nova de Gaia, professora contratada há 18 anos, já passou por cerca de 20 escolas, em cinco concelhos diferentes (Marco de Canaveses, Póvoa de Varzim, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e Porto).
Como todos os contratados, espera ansiosamente o dia em que deixará de estar “com o coração nas mãos” a cada ano letivo, sem saber onde ou quando será colocada.
Contudo, nem o seu histórico “saltitante” alterou a decisão de continuar como precária. E não foi apenas pelo facto de ter de concorrer a todo o país no concurso do próximo ano (2024), mas também porque os professores que manifestaram intenção de vincular pelas novas regras ficam alocados a um quadro zona e não a uma escola em específico.
“Em primeiro lugar, no ano letivo 2023/2024, ficaria sujeita a ficar colocada em vagas de QZP. Ou seja, no meu caso, ficaria colocada numa escola inserida no QZP 1, que abrange escolas até Monção, a 150 km de distância da minha residência. Em segundo lugar, no ano letivo 2024/2025, ficaria sujeita a ficar colocada em qualquer QZP. Ou seja, em qualquer escola a nível nacional”, explica.
Segundo a professora “isto significaria, ao contrário do anunciado pelo senhor ministro da Educação, andar com a casa às costas”.
“Tendo em conta os preços de aquisição/arrendamento atualmente praticados, a não existência de qualquer subsídio de renda ou transporte (ao contrário de outras carreiras), por ter 45 anos de idade, vida estabilizada em Vila Nova de Gaia (casa, família, marido com emprego no Porto e dois filhos em idade escolar), a obrigação de concorrer a nível nacional não me deixa alternativa senão optar por não concorrer à VD”, conclui.
A docente afirma que “cerca de 95 % dos professores” que conhece em condições de vida idênticas à sua “optaram por não concorrer”.
“Não é assim que vão atrair novos professores”
Cátia Oliveira, natural da aldeia de Bilhó, no concelho de Mondim de Basto, distrito de Vila Real, já deu aulas na Madeira, por amor à profissão, há 14 anos. Por motivos de saúde, regressou ao continente e tem conseguido, ainda que, muitas vezes, com horários incompletos, ficar próximo de casa. Andar com a casa às costas, de novo, não faz parte dos seus planos” e optou por recusar aquilo a que chama “um presente envenenado do ME”.
“Não é obrigando os professores a ficar longe de casa e das suas famílias, com custos demasiado acrescidos (aluguer de casa e deslocações) e sem qualquer tipo de apoio, que se vai atrair professores, como eu, mudando toda a sua vida para irem lecionar para Lisboa ou outras localidades ainda mais distantes”.
“Não é assim que se vai combater a precariedade, muito pelo contrário. A Vinculação Dinâmica não vem ajudar na fixação de professores, mas sim contribuir para o aumento de professores a andar com a casa às costas e por tempo indeterminado. Não quero este presente envenenado. Não quero ser obrigada a concorrer para todo o país, contra a minha vontade”, salienta.
Ficar longe, diz, significaria “voltar a pedir ajuda monetária aos pais, para poder continuar a exercer a profissão”. Cátia Oliveira acredita numa debandada de professores contratados, que “abandonarão a docência para procurar outras alternativas de vida mais estáveis” – e espera “não ser uma delas”.
“Não abdico dos meus filhos e da sua segurança emocional”
Quinze anos de profissão, um grande investimento no percurso formativo que a levou a poder concorrer para três grupos de recrutamento (1º Ciclo, Educação Especial e Ed. Moral) e dezenas de escolas e muitos quilómetros de estrada. Este é o resumo do percurso da professora Ana Margarida Antunes, “cansada de tanta instabilidade”.
Uma instabilidade que poderia ter acabado agora, se tivesse concorrido à Vinculação Dinâmica. Os motivos que aponta para ter recusado essa opção são muitos, mas na base estão sobretudo os filhos. A morar em Amarante e a dar aulas em Lousada, a docente consegue conciliar a vida pessoal e profissional, o que poderia não acontecer se tivesse optado pela VD.
“Tenho direito a escolher e não quero viver onde trabalho, mas sim trabalhar onde vivo. Quero garantir estabilidade emocional aos meus filhos. Quero ser eu a acompanhá-los, a orientá-los. Não quero que sejam criados por familiares, nem ter de os inscrever em escolas diferentes todos os anos, em diferentes localidades, para me acompanharem, não deixando de respeitar quem o faz por opção”.
Ana Margarida Antunes tomou esta decisão sabendo que arrisca “não ter colocação (oferta de horários a contrato ou os que existirem serem temporários e incompletos)” e a ser “forçada a desistir da área” em que “tanto” investiu “ao longo de duas décadas”.
“Ao longo destes anos tenho sentido que a minha vida profissional é uma roleta da sorte, em que as regras estão constantemente a mudar. Os normativos legais que regem os concursos mudam com frequência e, quando acredito que conquistei uma maior estabilidade que me permite garantir uma vida digna para mim e para os meus filhos, eis que existe uma reviravolta no jogo cujas consequências são uma incógnita. Não posso abdicar dos princípios pelos quais me orientei até agora e aceitar este presente envenenado”, sublinha.
A professora diz que os filhos “têm direito a ter uma mãe presente e que exerce a função parental em função do seu superior interesse”. E acrescenta que, mesmo que estivesse disposta a separar-se dos filhos, “o salário seria insuficiente para fazer face a todas as despesas implicadas nas deslocações ou o pagamento de duas rendas”.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
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