Mais do que a polémica que se tem gerado desde que o primeiro-ministro, António Costa, anunciou o programa ‘Mais Habitação’, é mesmo a constitucionalidade do arrendamento coercivo de casas devolutas para combater a crise habitacional do país que tem sido posta em causa. E está longe de reunir consenso entre os homens da lei. Exceto num ponto: a avançar, teremos pela frente anos de batalhas jurídicas.
Se os donos de imóveis não demoraram a dizer que estas medidas são um ataque à propriedade privada, o presidente da Associação Nacional de Proprietários avançou mesmo com a intenção de “recorrer a todos os meios legais” para travar este processo.
A Lei de Bases da Habitação estabelece que o Estado apenas “incentiva o uso efetivo de casas devolutas de propriedade privada”. Nesse sentido, “parece que só em casos excecionais poderão vir a ser aplicadas sanções, nas formas que a lei preveja, aos proprietários de prédios devolutos”, defende Luís Fábrica, consultor da Abreu Advogados.
Não é, porém, claro “que uma medida sancionatória aplicada pelo não uso efetivo possa ter por objeto bens que não sejam meios de produção, como os imóveis habitacionais”. Nesse sentido, defende, “o arrendamento compulsivo, enquanto medida sancionatória, referida na Lei de Bases, suscita dúvidas de constitucionalidade”.
O advogado Marco Moreira lembra, no entanto, que tudo “dependerá da construção jurídica que for elaborada” pelas equipas legislativas. Para o profissional da Private Lawyers, “a implementação deste tipo de medidas não implicará necessariamente inconstitucionalidade, mas estaremos sempre a falar de um equilíbrio muito difícil”.
Razão? O direito de propriedade privada está consagrado na Constituição mas não é um direito absoluto. “É a própria Constituição que admite a sua restrição”, mas limitada ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses protegidos.
O quadro permite diferentes interpretações. Segundo Marco Moreira, o Código Civil “define o conteúdo do direito de propriedade privada no sentido de que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”. Mas abundam “os casos de restrições ou limitações”, como as regras urbanísticas ou de proteção ambiental. “Enquanto proprietários, não nos é permitido fazermos o que bem entendermos com os solos ou os imóveis que nos pertencem”, explica.
No artigo 62.º da Constituição, em que a todos é garantido o direito à propriedade privada do solo, são enumerados dois instrumentos que poderão limitar esse direito: a requisição e a expropriação por utilidade pública. Mas que só podem ser concretizadas mediante pagamento de justa indemnização. E o direito à habitação é também um direito de matriz constitucional, cabendo ao Estado a sua promoção e garantia.
Há que ter ainda em conta as reais intenções do governo. No programa Mais Habitação, em consulta pública até 10 de março, é proposto o arrendamento das casas devolutas ao Estado, que posteriormente as subarrendará. Medida vista pelo Executivo como “um incentivo”.
No documento defende que “o arrendamento forçado, já existente na lei, pressupõe a existência de um prévio dever legal de dar uso ao imóvel. Isto é, os deveres dos proprietários são, por si, restrições ao direito de propriedade”. Nesta leitura, o governo entende que está a dar um incentivo à utilização do imóvel.
O plano para a habitação estabelece que, havendo uma casa devoluta e procura por imóvel com essas características, o proprietário pode celebrar livremente um contrato de arrendamento, nomeadamente com o IHRU.
Só se o dono não quiser arrendar é que será dado, como já se prevê para concretização de obras coercivas, um prazo formal para dar uso ao imóvel, diz o programa. Terminado esse prazo, o arrendamento passará a obrigatório por incumprimento do dever de utilização do imóvel e pela função social da habitação.
São enumerados dois instrumentos que poderão limitar esse direito: a requisição e a expropriação por utilidade pública. Mas que só podem ser concretizadas mediante pagamento de justa indemnização.
Para Marco Moreira, os documentos tornados públicos ressalvam “aquilo que parece tratar-se de um incentivo a que os senhorios coloquem voluntariamente no mercado as casas”. “O Estado vai propor o arrendamento voluntário a privados, subarrendando com uma taxa de esforço máxima de 35% do agregado familiar. Uma medida destas não levantará as questões constitucionais que uma medida de arrendamento coercivo pode colocar”, enfatiza.
Para Jane Kirkby, advogada e sócia da Antas da Cunha ECIJA, a medida é “naturalmente polémica, mas não uma inovação legislativa”.
Na sua génese há duas leis aprovadas pela Assembleia da República, a lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, que admite o arrendamento forçado e disponibilização de prédios na bolsa de terras, e a Lei de Bases da Habitação, que estabelece como função social da habitação o uso efetivo para fins habitacionais de imóveis ou frações com vocação habitacional e determina que o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o dever de promover o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentivar o de privadas, em especial nas zonas de maior pressão urbanística.
A advogada considera por isso prematuro carimbar as medidas sem conhecer a regulamentação. “O direito à propriedade privada admite limitações, como a requisição e a expropriação”, mas “sempre importará verificar, perante um manifesto conflito entre dois direitos constitucionalmente consagrados – o de propriedade privada e o de habitação -, se a limitação que esta medida introduz ao direito à propriedade privada passa no crivo da proporcionalidade, racionalidade e adequabilidade”.
Fonte: Diário de Notícias / Portugal
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