Um dia disseram a Rui Patrício que podia ser um dos maiores e ele acreditou: a história do voador do Stade de France

Casca grossa, dúvidas e superação, teve de tudo um pouco a história do guarda-redes que pendura as luvas esta sexta-feira. E troféus, claro, como esquecer aquela defesa na final do Euro 2016? “É um exemplo e uma inspiração para os jogadores mais jovens.”

A bola chegou à cabeça de Griezmann depois de um toque ligeiramente inverossímil de Payet. A ameaça, quando o cronómetro martelava os 10 minutos de jogo, virou-se para a baliza de Rui Patrício. O guarda-redes resistiu a saltar para trás, já cansado de saber que às vezes as fotografias ficam curtas, deu um ou dois passos e aí sim voou. Foi a defesa assombrosa da final do Euro 2016.

Foi tão admirável o gesto que o levantaram do chão em Leiria, em forma de 1.500 quilos de bronze. “Fiz a maquete, eles gostaram, o Rui Patrício foi lá para medir o corpo e captar umas feições. Uma coisa é ver nas imagens, outra coisa é ver ao vivo, não é?”, conta Celestino Alves André, o escultor, também responsável pelo busto de Stromp em Alvalade.

Sobre o guarda-redes que esta sexta-feira pendura as luvas aos 37 anos, numa cerimónia na Cidade do Futebol, apontou logo a virtude da simplicidade. “Muito simples.” E disse tantos “muitos” que não permite haver questionamentos. “Muito cordial, não vedeta.”

Rui Miguel Tovar, jornalista, estava no Stade de France naquele 10 de julho de 2016, uma espécie de feriado aqui no burgo. “Foi uma defesa espectacular. Ver aquilo foi divinal. Foi o melhor em campo na final. Se não me engano, ele fez três defesas a remates do Griezmann, mas essa, toda no ar… quando vi a estátua em Leiria, uau, é mesmo isto. Foi mesmo isto que aconteceu, brutal.”

Outro jornalista, Diogo Pombo, editor de desporto do “Expresso”, foi mais um afortunado a descansar os ossos numa daquelas cadeiras.

“Sem o braço e a mão esquerda do homem de Marrazes, a meio do voo que defendeu a bola cabeceada por Griezmann na final, talvez não teria havido a chance para o pé direito de Eder ir buscar o troféu do Europeu”, desabafa.

“Apesar do declínio na carreira nos últimos anos, o guarda-redes mais internacional de sempre de Portugal foi, com Pepe e Nani, um dos esteios da seleção na competição.” Foram 108 jogos pelo país (162, se juntarmos camadas jovens).

Inauguração da estátua de Rui Patrício em Leiria (foto Paulo Cunha Lusa)
Inauguração da estátua de Rui Patrício em Leiria (@Paulo Cunha / Lusa)

“Podes vir a ser um dos melhores do mundo”

A história de Rui Pedro dos Santos Patrício, nascido em fevereiro de 1988, começou bem lá atrás no Leiria e Marrazes, depois de experimentar o basquetebol e o andebol. Convenceu Aurélio Pereira num Torneio da Páscoa.

Reza a lenda que, quando assinou pelos leões com tão tenra idade na sede dos Marrazes, um homem do Benfica esperava a oportunidade para fazer o mesmo. Mais tarde, Aurélio revelou que oferecia luvas de Rui Patrício para convencer outros meninos e pais a mudarem-se para o Sporting.

O trajeto na academia, já com os confortos e futurismos de Alcochete que permitiam aos miúdos se sentirem verdadeiros futebolistas, foi dourado, com títulos nacionais em todos os escalões.

A certa altura cruzou-se com Ricardo Peres, treinador de guarda-redes. Uma vez sentaram-se num banco de jardim e as palavras pouco prudentes mas aparentemente prudentes saíram da boca de Peres.

“Podes vir a ser um dos melhores guarda-redes do mundo. Tens 17 anos, se te focares e trabalhares bem, se fores humilde e aprenderes bastante, vais ser, tenho a plena convicção, um dos melhores do mundo”, disse-lhe o técnico. Rui aceitou o desafio e transformou-se numa máquina de afinação, de absorção de conselhos, de miradas descobridoras, de conversas humanas.

Quando Rui Patrício falhou com o Leiria, atraiu a assobiadela para ele: "Eu disse que tínhamos guarda-redes para o futuro"

Quando Ricardo Peres e Paulo Bento subiram à equipa principal, Rui Patrício acabou por acompanhar. Antes da ida ao Funchal, em novembro de 2006, Tiago e Ricardo estavam tocados e o miúdo foi chamado. Como as películas no cinema, a coisa saiu como tinha de sair: Rui Patrício não sofreu golos e ainda defendeu um penálti aos 75’.

“Lembro-me de ir a correr para trás da baliza, para lhe dar indicação do que o jogador adversário poderia fazer”, conta Peres, em conversa com a Renascença. “Ele olhou para trás e disse-me ‘esteja descansado, que eu vou defender’. Eu fiquei calado. E isto é o Rui.” A admiração pelo antigo jogador é óbvia e honesta.

Rui Patrício só voltaria a ser opção na época seguinte, quando Paulo Bento e Ricardo Peres lhe disseram que tinha seis jogos “aconteça o que acontecer”.

Depois de tremer ligeiramente com Leixões e de encher a baliza contra o Manchester United, com exceção para o livre de Cristiano Ronaldo, o pecado chegou com a União de Leiria. E Alvalade ofereceu uma assobiadela à equipa. Mas Rui Patrício, com 18 aninhos, levantou os braços como quem diz “fui eu, amigos”. No final do jogo, Peres olhou para Paulo Bento e disse-lhe: “Temos guarda-redes para o futuro”.

As coisas complicaram ainda muito antes de melhorarem. Paulo Bento foi muitíssimo pressionado para tirar o rapaz da baliza de um colosso que em tempos teve Vítor Damas, um senhor que Patrício ultrapassaria em número de jogos. Era um tema nacional. Paulo Bento nunca caiu e Peres revela que Tiago, um concorrente pelo lugar, foi das pessoas que mais apoiaram o menino canhoto.

Rui Patricio Patrício no Sporting - Olympiacos Foto: José Sena Goulão/Lusa
 

Os títulos em Portugal chegaram eventualmente. Dois triunfos no Jamor, duas Supertaças e uma Taça da Liga contam uma curta conta. Juntou grandes exibições, terríveis erros, admiráveis levantamentos de alma, uma expulsão com o Barça de Messi, um 1-7 contra o Bayern e começou a mostrar que sabia defender penáltis, ganhando quem sabe o estatuto de sucessor de Damas.

“Exemplo e inspiração para os mais jovens”

A estreia pela seleção aconteceu pela mão de Paulo Bento, talvez o homem mais importante da sua carreira. Substituiu Eduardo, na Luz, ao intervalo contra a Espanha. Os portugueses ganharam por 4-0.

Só ficaria mais um jogo no banco e a partir daí desenharia uma carreira internacional, na qual venceria, claro, o Euro 2016, depois de chegar à semifinal em 2012, e a Liga das Nações. O esquerdino também defendeu a baliza da seleção em dois Campeonatos do Mundo.

Ukra partilhou estranhezas de coração com Rui Patrício, pois ambos se estrearam pela seleção nos sub-16, contra a França, em Odivelas. “Era muito tranquilo, gostava de estar no cantinho dele. Vias que havia ali potencial e talento. E houve quem apostasse nele”, diz um mais institucional Ukra.

Quando se começa a rir sozinho, já sabemos que vem aí coisa. “Pegávamos muito com ele, nos jantares e estágios da seleção, porque ele andava muito perdido com os países e as capitais. Até stressava”, ri-se malandramente, o agora senhor da TV que terá marcado ao guarda-redes, nos iniciados, na final do Torneio da Nike, no relvado das Antas.

Portugal cai nos penáltis conta a Espanha na semifinal do Euro 2012 (foto: Reuters)
Portugal cai nos penáltis conta a Espanha na semifinal do Euro 2012 (foto: Reuters)

Talvez Rui Patrício não acabe a carreira como gostaria, reflete Ukra. Seja como for, “teve uma carreira de sucesso”. Vinca a palavra “sucesso”. Afinal, “diz tudo”. O antigo extremo admite que a turbulência no início da carreira terá ajudado o jogador de Marrazes a crescer. “Deu muito aos clubes por onde passou e principalmente à seleção…”

Mesmo naquela vez em que, não esquecendo o tique vocal habitual, continuou a vociferar sem piedade “Bora, malta!”, esquecendo que do outro lado estava a seleção de Malta, a contar para a qualificação do Europeu sub-17, julga Ukra.

Depois do ataque à academia, em maio de 2018, e da tal dramática derrota na final da Taça contra o Aves, Rui Patrício saiu para o Wolves. Seguiu-se a Roma, onde encontrou José Mourinho e conquistou a Liga Conferência. Mais recentemente, sem qualquer relevância, passou por Atalanta e Al Ain, no Mundial de Clubes.

Para Ricardo Peres, é fácil resumir a história de Rui Patrício no desporto, para além dos quase 850 jogos.

“Um exemplo e uma inspiração para os jogadores mais jovens. Está ali uma carreira que pode ser estudada ao pormenor, que teve altos e baixos, que teve desafios muito grandes quando era muito novo, e a resposta humana foi sempre uma inspiração para qualquer pessoa que acompanhasse o Rui. Por isso, o Rui deve ser visto como alguém que teve uma carreira exemplar, do que é um ser humano num jogador de futebol.”

Fonte: www.rr.pt

Crédito das imagens: Reuters