Se o desfecho da eleição que opôs Donald Trump a Hillary Clinton em 2016 foi uma surpresa, já que as previsões favoreciam largamente a vitória democrata, desta vez a margem é demasiado curta para escolher favoritos.
Nos seis estados críticos que vão decidir a eleição, Kamala Harris está à frente em quatro, segundo a mais recente sondagem CNN/SSRS: Wisconsin, Michigan, Geórgia e Nevada. Donald Trump lidera no Arizona.
E na Pensilvânia, os dois estão empatados com 47%. É aqui que, esta noite, Harris e Trump se vão defrontar no único debate previsto entre ambos (às 02h de quarta-feira, hora Lisboa; às 22h de terça-feira, hora Brasília).
O frente a frente pode ser a chave que decide as eleições presidenciais de 5 de novembro, já que a diferença entre ambos é minima e, na maioria das sondagens, permanece dentro da margem de erro.
“Penso que o debate pode ser bastante consequente”, disse ao DN o cientista político Thomas Holyoke, da Universidade Estadual da Califórnia em Fresno.
“Presumindo que aqueles que ainda não se decidiram e estão agora a começar a prestar atenção assistem, os dois lados tentarão atrair o seu apoio”, frisou. “Ou pelo menos levá-los a não apoiar o oponente.”
Holyoke salientou que já não há muito tempo na campanha. A eleição é dentro de menos de dois meses e a percentagem de indecisos muito valiosa, tendo em conta que a vitória dependerá das margens.
A pesquisa conduzida pela SSRS indica que uma média de 15% dos eleitores nos estados críticos ainda não tomaram uma decisão final sobre em quem vão votar. É uma “fatia considerável” do eleitorado nos estados que detêm a chave para a Casa Branca e isso explica que este debate tenha a fasquia tão elevada.
“Às vezes as pessoas dizem que ainda não se decidiram mas têm forte inclinação para um lado ou para o outro”, ressalvou Holyoke. “Ainda assim, vai haver um grupo de pessoas que estão indecisas, em especial nos estados críticos, e são elas que vão decidir esta eleição.”
Argumentos e estratégia
Kamala Harris e Donald Trump nunca se encontraram para debater. Quando o ex-presidente se candidatou, em 2016, foi contra Hillary Clinton que debateu três vezes. Nesse ano, Kamala Harris corria noutras paragens e venceu a sua eleição para o Senado, contra a também democrata Loretta Sanchez.
Quatro anos depois, Harris desistiu das primárias democratas e foi depois escolhida por Joe Biden como candidata a vice-presidente. Debateu com o republicano Mike Pence, num frente a frente que ficou na memória dos eleitores por causa de uma mosca que pousou no cabelo branco do ‘vice’ de Trump.
Os dois debates presidenciais em 2020 opuseram Biden e Trump, cimentando a vantagem que o democrata viria a concretizar no dia da eleição. Mas tudo é diferente desta vez.
O primeiro debate do ciclo eleitoral correu tão bem a Trump e tão mal a Joe Biden que levou o democrata a desistir da corrida e provocou um terremoto na campanha.
Agora, o embate Harris-Trump entra em território desconhecido. De um lado, uma ex-procuradora geral conhecida pelo seu poder de argumentação e de apresentar um caso convincente. Do outro, um ex-presidente com estatuto de celebridade que delicia a base de apoiantes com um estilo cáustico e politicamente incorreto.
As regras também diferem de anos passados. Os microfones vão estar mudos quando é o oponente que está a responder, algo que beneficiou Trump e prejudicou Biden em junho.
Não vai haver audiência para galvanizar os candidatos. Haverá dois intervalos comerciais num frente a frente com a duração de 90 minutos, em que a campanha de Donald Trump espera que o ex-presidente desfira golpes certeiros e a de Kamala Harris deseja criar momentos virais que tenham impacto para lá da noite do debate.
“A estratégia de Trump em debates passados foi de interromper e irritar o oponente”, salientou o professor Holyoke. “Com o microfone mudo isso será mais difícil de fazer. É interessante que a campanha de Harris queria os microfones sempre abertos, talvez porque esperassem que Trump fizesse má figura.”
O politólogo disse que a expectativa com Trump é de que use argumentos que ou esticam a verdade ou não são de todo verdadeiros. “Talvez tente obrigar Harris a corrigi-lo o tempo todo, em vez de falar dos planos que tem”, aventou o professor “É uma estratégia possível. Se Harris for inteligente, vai ignorá-lo completamente e focar-se em apresentar-se ao eleitorado.”
É que, apesar de ser vice-presidente há quase quatro anos, Kamala Harris ainda não tem uma imagem definida junto dos eleitores, ao contrário de Donald Trump, cuja imagem está praticamente calcificada.
Isso dá ao republicano uma abertura para tentar definir Harris nos seus termos, confrontando-a com os dois argumentos mais eficazes para os eleitores: o estado da economia e a crise migratória na fronteira.
“Se ele for racional, é isso que fará. Nunca sabemos bem o que Trump vai fazer, porque a racionalidade nem sempre comanda a estratégia. Mas se ele jogar bem, vai falar na fronteira e na economia.”
Harris e as posições que defende ainda são relativamente desconhecidas do público em geral. Uma coisa que a separa de Hillary Clinton é que tem evitado chamar a atenção para a natureza histórica da sua candidatura, visto que é a primeira mulher e primeira afro-indiana-americana a poder chegar à Casa Branca.
O professor Holyoke acredita que Trump pode querer focar-se nisso, acusando-a de ser uma candidata que só chegou aqui por ser mulher e de uma minoria racial, respondendo a uma espécie de quota de diversidade.
“Ele tem estado a jogar falando de como Harris chegou onde chegou.” Também poderá tentar uma versão do que fez com Barack Obama em 2008, quando questionou se ele seria mesmo americano. Trump sugeriu que Harris “só se tornou negra há pouco tempo.”
Ela, pelo seu lado, vai querer apresentar algumas das suas políticas, embora não seja previsível que dê detalhes.
“Ela não tem muito a ganhar em aprofundar os temas. Vai apresentar ideias gerais sem dar muitos números”, antecipou o analista. “As pessoas dizem que querem saber as especificidades das políticas, mas isso não é verdade. Demasiados detalhes e as pessoas adormecem. Esse foi um dos erros de Hillary Clinton.”
As medidas de apoio económico à classe média e o aborto devem ser os seus focos, traçando um claro contraste com o oponente, já que é um dos temas que mais galvaniza a base democrata. Donald Trump tem estado a dar alguns outros passos e Harris pode pressioná-lo nisso.
“Trump tem tentado mover-se para o centro e está a assustar os seus amigos à direita”, referiu Holyoke. “A campanha de Harris está a explorar isso de forma inteligente. Se conseguirem deprimir nem que seja apenas um pouco do apoio evangélico a Trump, ele vai perder.”
O republicano titubeou quando lhe perguntaram a posição no referendo sobre o aborto na Flórida e agora diz que não apoiaria legislação para uma proibição nacional. “Os pró-vida começam a questionar-se se ele é mesmo um deles.”
Outro tema em que Kamala Harris deverá insistir é o do Projeto 2025, um documento de mais de 900 páginas que detalha as políticas e prioridades dos conservadores.
“Os democratas conseguiram tração com isto, pelo que ela provavelmente vai falar nisso e dizer que o Projeto 2025 é a verdadeira agenda de Trump.”
As consequências de um desastre
Nos primeiros dez segundos do debate entre Donald Trump e Joe Biden, a 27 de junho, ficou claro que a discussão não ia correr bem ao democrata.
A sua voz estava fraca, partes das respostas eram difíceis de apanhar e as ideias apareciam misturadas. O incumbente tinha um ar cansado e a espaços pareceu confuso, olhando para o lado sem expressão quando era a vez de Donald Trump responder.
Na análise pós-debate, os comentadores consideraram o desempenho de Biden desastroso e soaram os botões de pânico entre doadores e líderes democratas.
A pressão sobre o candidato de 81 anos foi tão grande que o levou a desistir da corrida, decisão conhecida menos de um mês depois – 21 de julho.
O contraste foi bom para Donald Trump, de 77 anos, que pareceu mais fresco e controlado, apesar de ter feito afirmações que não correspondiam à verdade.
Mas a troca de Biden por Harris deu a volta aos planos da campanha de Trump, que tinha a estratégia construída em torno do presidente democrata e gozava de uma vantagem sólida nos estados-chave.
É neste contexto que o debate desta terça-feira se torna de alto risco. “Se Trump vencer o debate, isso significa que Harris fez asneira de várias formas. E isso vai fazê-la parecer fraca e assustar algumas pessoas”, avisou Thomas Holyoke. “Ela precisa de se sair bem. Precisa de enfrentar isto com calma, apresentando uma mensagem e sem ser provocada por Donald Trump.”
O professor salientou que a dinâmica da campanha mostra que o republicano não deverá conseguir aumentar a sua base de apoio. “Precisa simplesmente de deprimir a dela.” Com a trajetória de Harris, que lidera a nível nacional por cerca de 3%, a redução da abstenção será essencial para a vitória de Donald Trump.
Fonte e crédito da imagem: Diário de Notícias / Portugal